sexta-feira, 6 de novembro de 2015

007 Spectre. O filme que ninguém queria fazer


Os Bond de Daniel Craig têm um antes e um depois.

Diz-se isto porventura mais do que era devido mas, em 2006, o que fez Casino Royale foi romper com um paradigma vencedor de 40 anos: o do agente galã por si só, subversor de qualquer narrativa com a mesma facilidade com que virava copos de martini e amassava as mulheres mais bonitas do mundo. Sempre fora por isso que as pessoas seguiam a filmografia do agente dos agentes: pelo glamour, pela catarse despreocupada, pela desconstrução conspirativa sem levar nada demasiado a sério. Casino Royale, realizado por Martin Campbell, e co-escrito pelo trunfo Paul Haggis (argumentista dos dois vencedores de Óscar anteriores, Million Dollar Baby e Crash...), não foi só um filme ambicioso. Foi um marco refundador do que podiam ser os Bond e todo o género espionagem por arrasto, à semelhança do que foram os Batman de Nolan para os super-heróis. Uma porta escancarada para o melhor drama e, com isso, para o quebrar da barreira entre o que era um filme de entretenimento e o que podia ser um filme de elite, "sem género".


Como qualquer operação tamanhamente basilar, nada disto se faz de uma só vez. É por isso que Quantum of Solace, dois anos depois, foi um filme perdido, inócuo e emparedado num propósito que o excedia largamente. Se o atentarmos, porém, como meio para chegar a um fim, a valia está lá. Afinal, é a partir desse desconto de tempo que se constrói o melhor Bond de sempre. Skyfall teve o melhor realizador e a melhor realização. A melhor fotografia, o melhor vilão e a narrativa mais encarnecidamente pessoal. Sam Mendes, o primeiro oscarizado a dirigir a saga, varreu do avesso todas as convenções, John Logan, o reforço de luxo no argumento (Gladiator, The Last Samurai, The Aviator), tornou tudo demasiado fácil. Skyfall, o primeiro Bond a passar a fasquia dos mil milhões, Óscar até de melhor música original, foi afinal, e como se comprovou agora, a medida impossível de suceder.


O lançamento de Spectre ficou marcado por uma série de episódios muito pouco amoráveis, muito alheios àquele rastro cósmico que costuma envolver todo o lançamento Bond numa gigante passadeira vermelha. Desde logo, o aparente enfado de Sam Mendes em repetir a experiência, ele que a recusou em primeira instância e só lá foi com um dedicado convencimento dos seus pares; depois, e muito mais pronunciadamente, o asco do próprio Daniel Craig, que passou a temporada promocional a falar do quanto estava farto da saga e do quanto a queria ver pelas costas. Depois de visto, se há percepção que transpira do filme de uma forma cristalina é essa: ninguém o queria realmente fazer. Spectre é a ressaca de Skyfall. Um filme à força, uma cláusula de contrato, um tarefismo de serviços mínimos. A falta de comprometimento com aquilo, de tudo e de todos, chega a ser desconfortável.


Daniel Craig assina, sem grandes subterfúgios, a sua pior performance no papel. Completamente apagado, como um jogador que vem de uma época de luxo e que já não encontra motivação para começar tudo outra vez. Craig está cansado e é cansativo, está sempre distante (até com as contra-partes femininas) e, desta vez, a rudeza da sua cara e dos seus modos não respira rigorosamente para além disso. Léa Seydoux confirmou, a seu turno, todas as reticências que havia quanto à sua escolha e fica a léguas de deixar qualquer marca, como uma das Bond girls mais transparentes de sempre. O argumento, e novamente com John Logan a bordo, é tão primário que chega a ser constrangedor. Spectre deveria representar, alegadamente e à luz da História, um momento estruturante na linha da acção, com o vilão maior, a Bond girl mais perene e a organização arqui-inimiga por excelência; o que vemos, pelo contrário, é uma amálgama de meias-ideias todas superficiais e miseravelmente mal concretizadas, coladas umas às outras com a mesma coesão de quem empilharia fascículos de Ian Fleming num canto da sala. A escala de subrendimento, porém, ainda piora.


Depois do maior showdown da série, Sam Mendes entrega porventura o filme mais modesto da sua carreira, um que, quanto muito, parece ter revisto por alto, enquanto fazia outras coisas a sério. Nem deu para disfarçar. Visual e cenograficamente é sempre pobre, não havendo uma única cena que fique na memória. As sequências de acção, por sua vez, só fizeram pior a emenda do que o soneto, de cada vez que tentaram "arriscar". Sobra, por fim, o maior de todos os pecados. Não teria existido rigorosamente ninguém mais capaz à face da Terra para interpretar a némesis de Bond, o notório Ernst Stavro Blofel. Christoph Waltz era o homem certo no lugar certo, uma felicidade inevitável à espera de acontecer. O seu desaproveitamento quase integral, quase insultuoso, será lembrado como um indesculpável falhanço histórico. Escreveram-lhe um papel minúsculo e escreveram-no a correr. Escreveram-no sem um único traço, um único twist, um único golpe de sorte. O deserto de cena no laboratório do deserto de Tânger, aquele espectacular punhado de nada, resume tudo isso de forma muito mais cruel do que eu o poderia fazer.


Spectre é um filme quanto muito suficiente para consumo, mau se entrarmos em qualquer parâmetro de comparação. Vale pela marca, pela boa notícia que é Andrew Scott (o excepcional Moriarty de Sherlock) e pela última frame de Monica Bellucci, um sopro divino que há muito merecia inscrever este currículo. De resto, é um filme inconsequente, pouco pensado e pior executado, que faria recuar a franchise pelo menos uma década, em termos de ideário. Faria, se fosse para levar a sério. Não é.

5/10

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