domingo, 4 de janeiro de 2015

St. Vincent. O indie do ano


É um daqueles filmes para nos deixar com um sorriso na cara o dia todo. De coração cheio, de bem com a vida. Acho que, hoje em dia, cada vez se menosprezam mais os filmes felizes. Também porque, a dada altura, eles se puseram a jeito. Vulgarizaram-se, melodramatizaram-se, enjoaram. Acho que, em boa parte, deixamos de enxergar o seu valor. O valor do feel good movie, do cinema como catarse para o que há de melhor nas pessoas, sem jogos, sem twists e sem perversões. St. Vincent é tão puro como dizer que se gosta de alguém. Não é um filme cor-de-rosa, longe disso, não vive em nenhum Olimpo acima das nossas cruezas mundanas, mas percebe o essencial, ao exaltar a beleza das coisas e da gente, mesmo quando a vida e o mundo podem ser realmente feios à nossa volta. É tão puro como dizer que se gosta de alguém, porque isso é coisa que dizemos tão pouco e que, afinal, nos esquecemos do tão simples que é, e de todo o bem que faz. St. Vincent é isso: é um filme que nos faz bem.

O argumento é divino na interacção entre as personagens, na sua caracterização e, no fundo, na qualidade imensurável que é ter uma beleza intrínseca. Note-se que a história não é nova: um velho gasto e áspero conhece um miúdo cheio de vida e, do cume dos seus vícios, assume-se como a figura paternal que lhe faltava, ao passo que, na verdade, estava ele a receber muito mais do que a dar. A história não é nova mas, como acontece tantas vezes com as melhores, o segredo são as pessoas e a forma de as contar, porque a fórmula está lá e é de sucesso por alguma razão. Theodore Melfi foi o realizador-argumentista e, na sua primeira longa-metragem, o mérito maior está longe de ser técnico. O sua chave de ouro foi recuperar ao cinema o que o cinema tem de essencial: um coração do tamanho do mundo, a redenção e a capacidade para emocionar-se a contar essa história.

Como já se deve ter tornado óbvio, num filme sobre pessoas, nada poderia ter funcionado sem um cast perfeito. Bill Murray e Jaeden Lieberher foram o cast perfeito. Permito-me começar pelo miúdo, porque ninguém pode ficar indiferente a quem interpreta aquilo com 11 anos. Convenci-me, em tempos, de que fazer cast de crianças era meio caminho para falhar o objectivo, porque não me parecia que os miúdos conseguissem realmente ser genuínos. Não sei se foi só imaturidade minha, mas facto é que os últimos anos têm sido espantosos nesse campo. Assim de repente, basta relembrar Tye Sheridan (Mud), Quvenzhané Wallis (Beasts of the Southern Wild) ou Asa Butterfield (Hugo). Jaeden Lieberher entra pois, e de portas escancaradas, nessa pequena galeria de luxo. O puto tem tudo: instinto, peculiaridade e um timing extraordinário. Se a qualidade do texto é necessariamente equiparável à forma como se o utiliza, Lieberher fez do óptimo que recebeu, um ainda melhor. Como se o tivesse feito a vida toda.

Do grandioso Bill Murray não há muito a dizer. Acredito que um produtor que tenha pegado no texto e fechado os olhos por um momento, só o possa ter imaginado a ele no papel. É um fato de alfaiate, cortado e costurado ao centímetro para pulsar a avalanche do seu velho carisma que, aos 64 anos, faz dele hoje uma autêntica figura de culto. Basta fazer uma pesquisa diagonal para ver tudo o que a Internet derrama dele por estes dias. E é daquelas personagens que o merece, de facto, porque é impossível não gostar dele. A sua inevitável redenção é a história que já vimos milhões de vezes mas que, em consciência, sabemos simplesmente que não podemos deixar de gostar uma mais. E a jornada inortodoxa de um velho e de um miúdo em casas de strip, em corridas de cavalos ou em tascas perdidas, com whisky e uma jukebox, toca-nos, de facto, porque, ao fim do dia, o cinema é muito mais simples do que parece.

St. Vincent não vai ganhar nenhum prémio maior - cá estaremos para torcer pelos dois Globos Musical/Comédia -, e não me parece que vá passar aos livros como um clássico. Para mim, contudo, foi amor à primeira vista e é definitivamente um dos meus mais acarinhados do ano. Como se fosse preciso, ainda tem uma daquelas playlists para beber de olhos fechados... e dá ouro até aos créditos. Boa sorte se tentarem não gostar.

8.5/10


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