quarta-feira, 16 de julho de 2014

Sonho de uma noite de Verão


'Miúdos, eu tinha 23 anos e já tinha visto umas coisas. A Copa, mesmo assim, foi um sonho especial muito antes de acontecer, foi, no fundo, o sonho bonito que eu nunca iria cumprir. Para quem ama isto, o Mundial do Brasil era a proposta irrecusável, a mera sugestão que, nos anos que a antecederam, se dedicara a inebriar-nos. A Copa era o calor e todas as cores, era o futebol do copo na mão e do samba nos pés, para ver na praia com um sorriso na cara e fazer aquilo de lés a lés, até às noites longas que nunca acabariam verdadeiramente, recheadas de todas as promessas do mundo. O Mundial do Brasil era a história que só um louco não quereria viver. Como em qualquer idealização, porém, tendemos quase sempre a romantizar tudo de mais. Queríamos tanto, que aquela Copa já nos devia tudo antes sequer de começar. Racionalmente, ela jamais poderia ter vivido à altura das expectativas. Miúdos, eu tinha 23 anos e já tinha visto umas coisas. Nunca tinha visto nada assim.

Não tive tempo para escrever remotamente tudo o que gostaria, e nunca me vou perdoar por isso, apesar das muitas horas dedicadas a rascunhar três jogos por dia, com o Spotify a derramar-me Bossa Nova nos ouvidos, com a graça de quem diz que gosta de mim. Todavia, nas forjas da Terceira Revolução Digital, este foi o Mundial mais universal de sempre, a Copa do Facebook e do Twitter, dos bits, dos vídeos e dos memes. Foi a Copa mais democrática, mais instantânea, mais popular. Foi o Mundial total. Não sei como é que será o futebol quando me estiverem a ler, daqui a muitos anos, mas foi aqui que começou. Para a minha geração, o Brasil foi uma ponte entre o fim da Faculdade e o primeiro trabalho e foi, portanto, a minha última oportunidade antes de ir ser adulto. Vi os jogos 'todos' e, ainda que a 7000 km de distância, vivi irresistivelmente a intensidade desse turbilhão, com aquele fascínio de quem só quer fazer modesta parte de algo demasiado deslumbrante. 

Sim, miúdos, eu 'estive' no 7-1. Aberrado à frente da televisão como qualquer ser humano normal, numa experiência extra-corporal limítrofe, como se o tempo tivesse parado à volta, menos para aquela máquina sociopata alemã, Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!, como o celebrou um Álvaro de Campos em febre, que eu espero que vocês ainda leiam na escola. Esse não foi o melhor jogo que vi na vida, mas foi, por certo, a minha experiência futebolística mais incomparavelmente radical. 4 golos em 6 minutos que eu, por mais anos que viva, nunca vou conseguir explicar, numa demolição filosófica e emocional como não houve antes nem depois, no futebol e provavelmente na vida. Nesse dia, Belo Horizonte incendiou como Roma. Foi o mais próximo que estive de ver a Bíblia a acontecer.

Sim, miúdos, também vi a Costa Rica, aquela casca de alma confinada ao Pacífico, eliminar três campeões do Mundo, um da Europa e outro quase. O Brasil não teria sido o Brasil sem essa história de heróis. A Copa América foi ganha pela Europa, mas nunca me esquecerei do México e daquele coração imensurável, medido em cada defesa de Ochoa e em cada festejo maior do que a vida del Piojo Herrera, a figura mais apaixonante que lá viveu. Do Chile hipertenso que deu o golpe de misericórdia na melhor selecção de sempre e ficou a uma barra de replicá-lo ao Brasil, e da inglória do Uruguai, na campanha trágica em que Suárez foi deus e voltou a ser um vampiro. Nem dos Estados Unidos, o soccer miraculoso que sobreviveu a um grupo da morte, até desembocar no melhor jogo da prova, o mais que improvável América-Flandres, numa noite esquecida de segunda-feira em que Tim Howard se tornou imortal. Na coroa, claro, a Colômbia. Que perfume, por deus, o mais irresistível de todos os rebeldes, na graça de um predestinado, meio Zidane, meio Riquelme, o herdeiro profético dos sagrados #10 da História, de quem hoje vocês já muito devem ter ouvido falar. James, com R.

Os americanos que chegaram mais longe foram os que sacrificaram mais, ou quase tudo. O Mundial do Brasil foi o Mundial em que o Brasil se esqueceu de o ser, perdido na neurose do Hexa, o Mundial em que trocou tudo por uma táctica militarista cujo único crédito foi, durante 18 meses e até ao último dia, um único nome de craque tropical. Neymar era o último vestígio do canarismo; quando partiu ou, em boa verdade, o partiram, a centelha foi engolida por um breu capaz de devorar 200 milhões de nação, a mesma que, depois de todas as manifestações, orou o 'Vai ter Copa', e cantou o hino mais carnífice a fundos pulmões, com a ilusão destilada nos olhos. No fim, todavia, ingrata e irremediavelmente, este foi o Mundial de todos menos do Brasil, que dele se envergonhará até ao dia do Juízo Final, ainda que eles achem, com propriedade, que esse já o viveram. 

A Argentina teve a certeza absoluta de que tinha chegado a sua hora, com o Messias, no Brasil e contra a Alemanha, um ritual maquiavélico para vingar um quarto de século inteiro, coroando o Príncipe, no mais perverso de todos os palcos. A miragem provocou mas, quando chegou a hora, esfumou-se no abismo da realidade. A Argentina foi sempre um gigante de pés de barro que, honestamente, não mereceu metade do que lhe aconteceu. O fim desfez-se na derradeira desolação, desonrado na desgraça da mais imperdoável de todas as bolas de ouro. Adoro aquele povo, adoro os melhores hinchas do mundo, que o foram mais uma vez, dime lo qué siente, adoro-lhes o Deus e, noutra década qualquer, estaria devotamente por eles. Mas não era a hora. Os monstros latinos foram os secundários do filme. Também é por isso que ele foi especial.

A Copa América, não obstante, ficou na Europa. Não obstante as baixas incontáveis. Sim, miúdos, também vi o 5-1, no dia em que Van Gaal deu uma parte de avanço antes de assassinar a maior selecção que já jogou, no dia em que Robben espantou os espíritos de outra vida e se vingou de Casillas, um desmoronamento lendário onde achámos, pueris, já ter visto tudo o que havia para ver. Afinal, esse momento estonteante da História, à luz da monumentalidade do resto, pareceu depois quase vulgar. Sim, miúdos, Portugal também fez feio. Impreparados, teimosos e vagamente decadentes, caímos tão lívidos como os outros pardais. Não tivemos história; o segredo é que também não tivemos muito tempo para nos lembrar disso. A Copa não esperou por ninguém. Imaginem a viagem que isto foi. A Inglaterra jogou como nunca e perdeu como sempre, a Itália deslumbrou e foi embora tão rápido como lerem esta frase. O Inglaterra-Itália, contudo, entre dois precoces, foi um dos verdadeiramente maiores. Vi-o com uma garrafa de whisky e com grandes amigos a um sábado à noite, a contemplar da única maneira possível o último bailado de um dos meus maestros sagrados. Se calhar já ninguém se lembra, mas, nesse dia, Pirlo fez uma assistência sem tocar na bola e desenhou um zigue-zague de livre de propósito até à barra, só porque nunca foi deste mundo. Que honra beber à tua, Andrea.

Os europeus que se pareceram safar, foram pouco menos do que isso. A Bélgica, menina dos olhos, só fez o jogo mais especial, mas ficou-nos a dever o resto. A Suíça esvaiu-se fácil, Fernando Santos ainda hoje não acredita no que lhe aconteceu. Valeu-nos a Grande Armadilha de um oclumante, um mago negro em pessoa que assombrou quase tudo o que lhe apareceu à frente, com os cheque-mates mais estapafurdiamente geniais que vi na vida. Van Gaal fez coisas no Brasil que ninguém vai fazer 20 anos depois dele. O futebol são onze contra onze mas, no fim, sabemos bem quem ganha. Foi a glorificação de uma geração bestial, tão melhor do que todos os outros que nos deixou quase comprometidos. Não gosto da Alemanha, mas ter rivalizado Neuer, Lahm ou Schweinsteiger será para sempre um privilégio. Houve tempo até para que Herr Klose firmasse a posteridade nos livros. 12 anos a marcar golos, 4 meias-finais, 2 finais, até ser finalmente feliz. O futebol encontra-nos sempre. A primeira fase do Brasil foi tão boa que até hoje não vos posso garantir, com certeza, que aconteceu mesmo. Mas aposto com vocês, miúdos, que ninguém voltará a ver em directo uma igual. Depois, foi sobreviver na selva e, na selva, vale sempre a lei do mais forte. Quando ganha o melhor, encontramos sempre alguma paz.

Este foi o Mundial dos guarda-redes. Neuer, Ochoa, Navas, Howard, já falei deles, mas igualmente de M'Bolhi, o sopro de vida do deserto africano que podia ter escrito uma História diferente, naquela Argélia que foi o único verdadeiro adversário alemão, e ainda de Bravo, Romero, das lágrimas de Júlio César e da substituição de Krul. O Mundial podia ser condensado naquele minuto 120 do Holanda-Costa Rica e sintetizaria toda a explosão de génio, loucura e feitiçaria que o pintou. Com o desplante de Van Genius, omnipresente, omnisciente e omnipotente no banco, o Mundial também foi o voo estratosférico de Van Persie, numa caderneta que só acabou na tesoura da final, passando pela arca do tesouro do Bandido Jamesito, de primeira ao Uruguai, claro, mas com aquele poema ao Japão, mais ainda. Foi o tiki-taken alemão, o chocolate colombiano, o contra-ataque francês e holandês, o futebol total mexicano e chileno, foi a vertigem de Neymar e Messi jogarem-no sozinhos e foi o vólei de Cahill, 34 anos e no seu último dia de vida internacional, corolário justo do carisma australiano e dos outros digníssimos eliminados prematuros, sem os quais isto nunca teria sido tão inteiro. Estar em casa de madrugada e ver um Honduras-Equador. Meu deus, que saudades.

Sim, miúdos, ainda vamos falar da Copa muitas vezes. Sempre que vocês me pedirem para ensinar o salto do Robbie, e o festejarmos com a dança dos cafeteros ou os abraços do Herrera, de cada vez que me perguntarem se o Van Gaal tinha um bola de cristal ou me pedirem, a medo, para voltar a contar os terrores da Alemanha. E eu sei que podia ficar a falar dela eternamente, quanto mais não seja porque ela vai mesmo viver até lá. Da minha parte, contudo, mais do que todos os jogos grandificantes e todo o êxtase, a única forma suficientemente justa de lembrar o Brasil 2014 será o brilho nos olhos com que vos vou recordar de cor cada pormenor, quando já for velhinho e isto já tiver sido tudo noutra vida. Como Snape respondeu um dia a Dumbledore, quando então me perguntarem 'após todo este tempo?', será a minha vez de dizer:

'Sempre.'

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