quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

True Detective. Não é tão boa como ouviram dizer


Nos últimos meses, a série dedicou-se a coleccionar lideranças em listas das mais esperadas do ano. A história de dois detectives da América sulista na pista de um serial killer não esbanjava novidade nem sedução, mas o selo da HBO e a recruta de Matthew McConaughey e Woody Harrelson, ambos em fases douradas das respectivas carreiras, criaram o aparato, alimentado por bons trailers e vastamente sancionado pelas primeiras críticas. No início de Janeiro, o episódio inaugural não fez por menos e despojou A Guerra dos Tronos como abertura mais vista de sempre da HBO. Da minha parte, sou forçado a constatar que não, True Detective não é assim tão boa como ouviram dizer. Na sua tonelagem gótica e incrivelmente própria, é muito melhor do que isso.

Não é, porém, um amor instantâneo, porque primeiro estranha-se. À cabeça, True Detective é algo como uma martelada arrogante de modos e de conceitos. Uma série provocadora, no sentido em que não faz nada para que gostemos dela. É propositadamente pesada, estranha, desconfortável. Não ficamos convencidos à partida e o instinto é achar que não vai ser suficiente. Demora-se, é violentamente sombria e repele-nos com a pretensão da sua filosofia. Certo é que, quando damos de conta, já estamos completa e magneticamente colados. True Detective é um objecto perverso porque nos ressaca antes de viciar, contagiando-nos de um jeito inapelável para o seu vórtex de negrume, como quando se olha para um abismo. Aí, já não conseguimos parar de olhar. Não podemos e já não queremos.

A série é dos produtos mais idiossincráticos de que me lembro. No fim de contas, a verdade é que tem uma magia e uma proposta bestiais. Uma sedução tão elegante quanto perigosa, que não sabemos recusar. A primeira temporada tem um único realizador, portanto a fidelidade de conceito foi salvaguardada. Assina Cary Fukunaga, um jovem de 36 anos e curta carreira, mas já premiado em Sundance (Sin Nombre, 2009) que, até ver, tem feito um trabalho no limite da perfeição, na recriação paralela do obscurantismo do caso, do ambiente e daqueles que o fazem.

Como era inevitável, a narrativa também transborda as medidas, sendo o elemento-chave a forma brilhante como sabe vender a história. Primeiro na criatividade das timelines: a trama de um serial killer e dos dois detectives que o apanharam é contada num intervalo de 17 anos, com os flashbacks a serem dois terços da acção, mas com o halo a manter-se transversal a tudo; depois, no requinte cirúrgico do que se concebe. Tudo é executado num conta-gotas magistral, cheio de segredos e insinuações, de pistas e ilusões, que torna quaisquer momentos normais em instantes tensos, cinematográficos e, no limite, imprevisíveis, que nos estimulam até à medula. Mesmo quando não acontece nada, tudo vale a pena, e uma série capaz de impressionar tanto com a mera sugestão do que pode fazer, é sempre uma série especial. O criador e showrunner é Nic Pizzolatto (38 anos), um ex-professor universitário e romancista em estreia absoluta nestas andanças, e que não podia ter inventado forma melhor de o fazer.


Falei no cast de início e os galões não ficam, de facto, por mãos alheias. Se dúvidas houvesse, Mat McConaughey está mesmo no período mais glorioso da sua vida profissional. Depois do melhor filme da carreira - o estupendo Mud, estreado em Sundance há ano e meio -, do Globo de Ouro por Dallas Buyers e do mais que antecipado Óscar, o texano arrisca-se bem a ir buscar uma tripleta extraterrestre com um Emmy no fim do Verão, a continuar por este andar. O seu Detective Rust Cohle é difícil de descrever, o que, neste caso, é efectivamente uma coisa boa e, sem volta a dar, a trave-mestra que eleva tudo o resto. É um misto entre polícia obcecado e homem destruído, entre compromisso com o trabalho e uma filosófica falta de rumo e assombração, puro nos gestos mas indecifrável no resto. Uma figura que despeja génio, daquelas que, mesmo num dia mau, seria capaz de impressionar qualquer um à sua volta, sem esforço. Que deslumbra e assusta na mesma medida, como um velho ancião a contar as lendas e as profecias da sua vida. Parte da acção é exactamente isso: ele sentado a uma cadeira, velho, desfeito, gasto e consumido por 20 anos de uma demanda. O poder que irradia nesse estado é tudo o que há para dizer sobre o seu momento de graça.

Woody Harrelson, todavia, não pode ser descurado. Mantém a máxima de que não sabe fazer nada mal e nunca é um secundário na verdadeira acepção da palavra, pelo carácter, pela omnipresença em todos os pontos essenciais, pelo contra-peso. É uma personagem muito empática pela humanidade latente, pela sobriedade, pela forma genuína e honesta como reage às coisas, mesmo que nunca seja imaculado. Como era de querer, fazem uma parelha tão fracturante em cena como ideal fora dela. A fechar o leque está a cativante Michelle Monaghan (Gone Baby Gone, Source Code), mulher de Harrelson, que empresta expressividade à história e serve de pêndulo ao ambiente e à própria relação entre os protagonistas.

A série tem a particularidade de ser uma antologia, o que significa que a segunda temporada terá sempre realizador, argumento e protagonistas diferentes. Com 8 episódios, a ordem é, portanto, aproveitar o maná enquanto ele cai do céu, coisa que, até ver, tem correspondido religiosamente a cada semana. True Detective é o primeiro grande acontecimento do ano e, acredito, um que ficará muito para além dele.

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