domingo, 12 de janeiro de 2014

O teste do tempo



"I will survive. I will not fall into despair. I will keep myself hardy until freedom is opportune" 
Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), 12 Years a Slave 

É uma das frases da ordem, em noite de Globos de Ouro, e tornou-se insistente durante o derby. É que, de forma improvável, também consegue lê-lo a uma luz especial. Ver o que o Benfica jogou hoje é a constatação de como a paciência é mesmo uma das virtudes mais determinantes no futebol, como na vida. O Benfica passou os últimos três anos a ser humilhado pelo rival de todas as formas a que a imaginação permitiu chegar, perdendo os jogos fáceis, os jogos difíceis e todos os outros pelo meio. Foi uma equipa muito boa quase sempre, mas assombrada de cada vez pela ideia de que essa capacidade não era mais do que pó no vento. Um onze digno e esforçado, que se tentou sempre abstrair desse medo, mas que, por melhor cara que tenha feito, jamais se conseguiu dissociar do mau pressentimento que lhe gritava aos ouvidos que a morte estava ali, à espera, ao virar de cada próxima esquina.

Cada um terá a sua opinião sobre a continuidade de Jorge Jesus. Eu acho que ela não fez sentido. O facto é que o treinador do Benfica sobreviveu. Contra quase tudo e averso à razão que, na magia negra do pontapé de Kelvin, lhe explicou que já não valia a pena, Jesus subsistiu agarrado à ilusão da oportunidade que estava para vir. Como um jogador de poker que viu as fichas esvaírem-se como sangue, mas que sabia ter de esperar pela sua jogada. A sua mão, poderosa, decisiva e indiscutível, e que não chegaria nem um momento antes, nem um momento depois. Jesus teve hoje um dos seus melhores jogos de sempre pelo Benfica, não porque esfacelou o adversário, não pela nota artística, não porque isto defina alguma coisa, mas porque provou que era possível. Porque teve de ir ao Inferno primeiro, mas soube enxergar o seu momento quando ele chegou.

O Porto esteve bem nos bastidores. Durante a semana, os media proclamaram o histórico recente entre ambas as equipas, como se fosse necessário. Vítor Pereira veio reiterar a maneira como conseguia agredir o jogo adversário e como esse tinha sempre de mudar por causa dele, e Paulo Fonseca provocou ao dizer que Jesus não teria coragem de entrar com dois avançados. O Benfica ganhou pela forma como soube estar perante tudo isso desde que entrou em campo. O Porto está mais fraco, é evidente que sim. Bluffou como devia mas apanhou pela frente um adversário calejado a ferro e fogo que, mais do que não o temer, nunca o respeitou.

Isto não é o mesmo que dizer que o Benfica só podia ganhar a um Porto 'diminuído'. É que esse é um estado discutível, como a História o evidencia fartamente, e porque, se cada equipa tem idiossincrasias, a do Benfica era não ganhar por decreto. Esta é, pelo contrário, uma crónica de mérito, sobre a vitória inegável de quem, tendo um uma memória recente tão corrosiva, soube fazer acontecer em campo a sua superioridade, algo muito mais difícil do que pode parecer à primeira vista. Enzo e Matic foram perfeitos, nesse duplo-pivot de sonho em vias de ser destruído, como foram determinantes Luisão e Gaitán.

Já sobre o mais estupendo de todos, permito-me ao parágrafo só para escrever: Lazar Markovic. O resto é para quem viu.

Claro está que as equipas não jogam sozinhas e que as vitórias dificilmente se fazem só do merecimento de quem as ganha. Mesmo que venha a ser campeão, acto que os registos consideram provável, Paulo Fonseca deixou hoje demasiado a nu tudo o que lhe falta para estar a este nível. Já falei aqui dos restantes dilemas conjunturais que rodearam a equipa nesta época, mas tudo isso é chutado para plano de fundo se virmos o que o Porto não jogou hoje na Luz. Aliás, nessa antítese, o seu único mérito foi conseguir que o rival também não jogasse durante uma parte (num jogo monstruoso de Fernando, o tipo de jogador que já vem com chip para poder jogar alheio às insuficiências que o ladeiem). O Porto foi macio, desencantado e perdido, tanto como o olhar baço e os braços cruzados do seu próprio treinador. Não teve uma solução para criar, jamais desequilibrou e saiu da Luz com uma anoréctica oportunidade de golo. Fonseca foi o pastor de um constrangedor rebanho de sacrifício e, avaliando o que têm sido os Benfica-Porto, isso fala de tudo alto demais.

A corrida ao título é finalmente primeiro-mundista e isso é uma boa notícia para todos, ainda que hoje, como é bom enaltecer sempre, não se tenha ganho nem perdido nenhum campeonato. Para os adversários do Benfica, porém, é impreterível ter bem presente que alguém acabou de superar o mais terrível de todos os seus traumas.

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