quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

12 Years a Slave. Os clássicos que só se vêem uma vez



Não é fácil viver sob o epíteto de favorito do ano. 12 Years a Slave carrega-o desde há muito, num processo que já desembocou numa chuva de nomeações para os Globos e que, por certo, terá o mesmo desfecho na comunicação que a Academia fará na próxima semana. Não é fácil viver sob o epíteto de favorito porque não é preciso ser o melhor para ser efectivamente muito bom. É disso que se trata. 12 Years a Slave brota de um daqueles contos verídicos bigger than life que sensibilizam ao primeiro olhar. Tem uma realização não raras vezes deslumbrante, boas prestações individuais e uma extraordinária banda sonora, paternidade do imortal Hans Zimmer. É, por isso, uma obra que merecerá sempre ser vista e admirada. Ao mesmo tempo, é aquilo a que chamo um filme para ver só uma vez. Pesado, majestático, em vários momentos assoberbado e absorvido no seu próprio compasso. É um filme que choca mais do que emociona, mais um retrato do que uma mensagem e tem todo o mérito nisso. Pessoalmente, porém, mesmo sabendo apreciá-lo, não é um registo que me apaixone. Faltou-lhe, quiçá, intimidade, isto é, aproximar-se do espectador e marcá-lo de uma forma mais pessoal.

Para o bem e para o mal, Steve McQueen assinou um filme de autor. Um filme sem nada de ordinário, que plasma em todos os pormenores o seu gosto e a sua leitura. Isso torna-o às vezes distante, fazendo com que abuse nas temporizações e tornando a acção mais dolosa e mais filosofada. Coloca-o, ao mesmo tempo, num permanente patamar de excepcionalidade, que rende algumas das mais brilhantes cenas do ano. Os 2 ou 3 minutos de "pontas dos pés no chão" - quem viu, perceberá - são qualquer coisa de inenarrável, como é assombrosa a crueza da violência e deliciantes os grandes planos de que este se socorre constantemente para articular o filme (a que também não é alheia a notável cinematografia de Sean Bobbitt, que colaborou com McQueen em todos os seus filmes). Talvez 12 Years a Slave não seja esse tão propalado filme maior de 2013, mas dificilmente Steve McQueen não é o realizador do ano. O seu trabalho é de um requinte plástico monumental.

Ironicamente há momentos em que se sente que a forma como o realizador se evidencia, como se nota a sua presença, bonifica o seu trabalho mas penaliza a fluidez e a coesão do filme. É, aliás, um pouco difícil avaliar a adaptação de argumento de John Ridley - que, em traços gerais, é bastante sustentada nas balizas da história -, porque o seu principal défice parece-me contaminado pela realização. O primeiro capítulo é excessivamente precipitado e essa brusquidão, essas omissões de narrativa compensadas, nos entretantos, por excessos cirúrgicos, são uma constante do filme. Parecem exactamente consequência das leituras pincelares de McQueen, do registo discursivo inortodoxo que imprimiu ao filme, e não opções argumentativas. No resto, contudo, é uma adaptação forte, desencantada, triste e não particularmente lírica, apesar dos indícios sugerirem o contrário.

Nas performances, Michael Fassbender é bestial. De início até parece que vai soar artificial, tal o exagero pretendido, mas o germano-irlandês saca mesmo uma daquelas exibições de levantar o estádio, mercê de uma loucura profética e incendiada que, mais do que isso, lhe brilha no olhar e lhe palpita nos gestos em cada minuto a uma intensidade sobrehumana. O desconforto e a adrenalina que sugere sempre que entra em cena estão ao alcance de muito poucos e ilustram, para mim, a melhor prestação da sua carreira (Hunger incluído). Chiwetel Ejiofor, por sua vez, é afectado pelo presente armadilhado que era ter um papel tão fácil. Não está em causa que tem uma performance sólida, que não fica de menos ao filme, mas com uma caracterização tão inevitavelmente favorável, a única medida de reconhecimento era que se transcendesse e não acho que Ejiofor tenha alguma vez tocado esse nível. A grande surpresa veio da estreante Lupita Nyong'o que, no meio de um abuso doentio e no papel mais físico da película, soube representar de forma desarmante a inelutável fragilidade do ser, e que por isso já foi muito justamente reconhecida com a nomeação nos Globos.

Apesar do potencial humano da história, 12 Years a Slave é sobretudo um produto estético de apreciação obrigatória, ao qual faltou uma emocionalidade, pelo menos, diferente. Será um filme unânime, provavelmente reconhecido como tal pelos prémios, que é de facto muito bom, mas que não é um dos cinco melhores da temporada.

7.5/10

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