quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Nightcrawler. A frieza como virtude e como senão


Não é um filme impressionante. Não escala, não vai buscar um zénite onde não estávamos à espera, não tem alcance suficiente para nos arrebatar. Ao mesmo tempo, também não é previsível ou vulgar. É como que uma anestesia, uma carga venenosa que nos deixa adormentados. Não nos mata, não nos exalta, deixa-nos, em vez, como que paralisados com a sua frieza cirúrgica, com a limpeza crua do seu pragmatismo. Nightcrawler é uma história do "jornalismo" sanguessuga, do freelancing abutrificante da 25ª hora, que leva repórteres avulsos a perseguirem a polícia madrugadas a fio, em busca das tragédias onde possa gangrenar o pior sensacionalismo televisivo.

Acho que o maior mérito do filme é o seu carácter desapaixonado. A forma como se auto-repudia, evitando, por todos os meios, ser estético, moral ou remotamente empático. Nightcrawler é um trabalho sujo. Não tem entrelinhas, não tem redenções, é exactamente o que parece. Sugere-nos o contrário, sugere-nos um desenlace mais óbvio, mas afinal, e de certa maneira, não tem sequer "ficção". Não raras vezes é mais difícil ser realista do que criativo e é incontornável a forma como o argumento se despe desse protagonismo fácil, garantindo uma experiência quase documental ao espectador. O californiano Dan Gilroy é quem assina, na qualidade de argumentista a estrear-se como realizador . A nível técnico, a competência também transparece na direcção. O sumo visual do filme é o resultado de um trabalho próprio de uma régie televisiva - curiosamente omnipresente à própria acção -, com a cadência, o ângulo e a desmultiplicação de uma grande emissão. Os momentos de "grande reportagem", sejam no acto, sejam na transmissão, são irrepreensíveis e agarram-nos a essa vertigem do directo.

O problema de um trabalho nestes moldes é que está cronicamente limitado à partida. Condenado a que se enalteça o rigor fílmico, a técnica, a interpretação, quase todos os subprodutos, mas com aquela distância que separa os filmes bem feitos dos que absolutamente nos roubam. A Nightcrawler faltou génio e reflexão. Faltou uma finta que fosse, faltou ser mais provocador, negro ou delirante. Faltou desequilíbrio, febre, sal. Aquele tipo de retrato, acabado como o foi, é ázimo. É um filme que estará sempre incompleto, desconfiado de que aquilo não pode realmente ser e acabar só assim.

A nível de performance, Nightcrawler é o one man show por definição. Jake Gyllenhaal não tem sequer uma sombra nas entranhas da sua noite, enquanto sujeito descarnado, deslocado e sociopata, que tropeça num rumo por acaso e faz da sua negritude a carreira que nunca poderia ter. Já o escrevi mais do que uma vez ao longo dos últimos anos e, desta feita, parece que a época dos prémios vai finalmente fazer-lhe jus: Gyllenhaal é um dos mais notáveis protagonistas da sua geração e, sem lugar a dúvidas, uma das certezas mais sustentadas da actualidade. A sua mutabilidade e a compleição intensa que lhe imprime sempre colocam-no num nível especial e é isso a que assistimos mais uma vez. A alienação do homem que retrata, a sua resposta na aparência, os seus modos autísticos, a sua descolagem social, tudo compõe notavelmente uma das personagens do ano. Se não acho que o filme vá morar nessa elite, pois ele sim.

Nightcrawler não é para qualquer disposição, nem para qualquer estilo, mas o grande lead, a frieza e a competência técnica transversal serão, contudo, razões suficientes para justificar a oportunidade.

7/10

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O diário da nossa paixão


'This man showed again why he's my idol'
Drogba

Um extremo desce pela meia esquerda, na vertigem do contra-ataque, a cavalgar sobre um adversário desequilibrado, sob o prenúncio da ferida que está iminente. A adrenalina sente-se, mas não se consegue adivinhar o desenlace à nossa frente. Sabe-nos a sangue, mas tudo o que vemos é um avançado encoberto pelo mar de pernas adversárias, acotovelado na jaula que é a pequena área. É nesse exacto momento que sai o passe para o vazio. Aquele, porém, não é um vazio qualquer. O passe sai exactamente para a esquina da área e naquela esquina de área só não está ninguém de propósito. Só não está ninguém na exacta fracção de segundo que duram os teletransportes de Frank Lampard.

Um matador finaliza de qualquer quadrado do campo. Ele também já os marcou de todas as formas, mas há qualquer coisa de especial nos que reservam uns metros específicos para si próprios, nos que têm uma assinatura. Aquele será sempre o seu movimento. O que todos estudaram, previram e adivinharam ao longo dos anos, mas que muito poucos conseguiram conter. Um dia a Terra pode parar de girar, mas Lampard nunca deixará de entrar a correr na esquina da área, para marcar mais um golo. Num jogo de título, a perder em casa com o adversário mais directo, a 5 minutos do fim, Milner confessou na conferência de imprensa que, naquele contra-ataque, soube instintivamente onde pôr a bola. Que foi só cruzar como se, afinal, jogassem juntos há 30 anos. Ele, claro, estava lá. Como em todas as outras tardes da sua vida. Mesmo que, por uma vez, não quisesse ter estado.

Quando o vi ajeitar-se de azul celeste junto à linha lateral, à entrada do quarto-de-hora decisivo, confesso que o coração ficou pequenino. O futebol, como a vida, não devia ser assim. Lampard e o Chelsea sempre foram uma e a mesma coisa e, onde quer que estejam, unos serão até ao fim dos tempos. Nenhum dos dois merecia a crueldade deste desencontro. E desejei, por isso, que Pellegrini não jogasse sujo, que nos poupasse àquela facada à traição, mesmo sabendo que o futebol, como a vida, é muito mais perverso do que isso. Mesmo sabendo que ele tinha de o fazer.

Aquele golo, cravado pelo destino a ferro e fogo, é um momento icónico e ímpar, tragicamente deslumbrante. Foi uma implosão filosófica, cujas ondas de choque nos devem ter carcomido a todos de maneira diferente. Não sei quanto a vocês, mas eu, nem que tenha sido por um segundo, vi aquela carreira toda a passar à minha frente. E, nem que tenha sido por um segundo, pareceu-me ver outra coisa. Pareceu-me adquirido que quem lá estava era um tipo com 26 anos mal feitos, cabelo invariavelmente em desalinho e as ganas na cara de quem tem tudo para provar. Um promissor médio inglês no tempo em que de inglês não havia nada de promissor, um exemplo de líder antes de ser um líder pelo exemplo, numa armada azul pungente que, então, ainda nem conhecíamos. Pareceu-me ver o 8 estatual de outros tempos, às costas de um verdadeiro caça em transição ofensiva que foi, no fundo, a maior publicidade que a Fly Emirates nunca pôde pagar. Sempre que olhar para ele, sei que vou ver esse início de tudo, com o privilégio mal escondido de saber que o resto, como dizem, foi História.


Do caldeirão encantado desse Chelsea imortal não saiu apenas um dos médios europeus mais verdadeiramente excepcionais de uma geração. Fez-se um daqueles homens que marca a vida de um clube e a era de uma liga inteira. Talvez o Chelsea tenha ajudado a fazer Lampard. Mas num tempo cínico demais, em que tivemos de aprender a pôr um preço em tudo, engolidos pelo tsunami financeiro que teve o próprio clube como intérprete original… certo é que foi definitivamente Lampard a fazer o Chelsea. A dar-lhe a humanidade, a altivez, o carisma. O Chelsea podia ter acertado ou falhado, mas podia, sobretudo, nunca ter sido o que foi. Teve a felicidade de, mesmo sem muitas vezes o merecer, ter reunido, mais do que grandes jogadores, um punhado impagável de grandes homens. Não sonegando a guarda de honra, que todos sabemos quem são, nenhum pode remotamente querer disputar o lugar do maior de todos.

Nunca vou perceber porque é que Lampard aceitou o City e esse ónus ponho-o nele, por mais irracional que isso seja. O Chelsea é que disse, com todas as letras, que ele já não cabia. Que um tempo tinha chegado ao fim e que a hora era de partir. O Chelsea é que o deu por acabado… mas, mesmo assim, era a ele que exigíamos mais. Era a ele que exigíamos ser, não o herói que merecíamos, mas aquele do qual precisávamos. Num processo rocambolesco, Frankie acabou na mais detestável de todas as némesis. Na única com estômago suficiente para tentá-lo, envenená-lo, para aliciá-lo. Nunca vou conseguir aceitar aquele sim. Não sei se ele o fez por amargura, por achar que devia sair nos seus próprios termos ou por considerar que ainda era genuinamente útil, e não sei se se arrependeu. Não sei muitas coisas. O pouco que sei é que ele não merecia ouvir o que Mourinho lhe disse no fim do jogo. O pouco que sei é que, no Chelsea, quase tudo pode ser um dia posto em causa. Ele não.

Ao longo dos anos julgaremos muitas pessoas. Na maior parte das vezes não saberemos as suas razões, noutras tantas estaremos errados. Quase nunca poderemos ter a certeza. No Domingo, tivemos. Acho que já toda a gente teve um momento na vida em que só não chorou porque não pôde. Na twilight zone aberta por aquele volley eterno, Lampard descobriu que o único adversário que não podia bater era ele próprio. A maneira como baixou imediatamente a cabeça depois de marcar, envergonhado e impotente, fazendo-nos adivinhar as lágrimas que lhe marejavam os olhos, tornou-se, naquele instante, na mais pura de todas as suas provas de amor ao Chelsea. Diz-se que só damos o devido valor a uma pessoa quando a perdemos. Lampard conseguiu ser a bandeira maior de um clube, mesmo no dia em que, como adversário e no último encontro, lhes custou a vitória. Por uma tarde mais, foi ele a alma do Chelsea. Foi ele a razão porque olhámos para o clube e conseguimos ver para além da marca, porque guardamos as memórias e conservamos a estima. Por uma tarde mais, o mundo falou dele e falou do Chelsea com admiração. Foi sempre assim.

No fim da minha vida, terei querido estar em muitos lugares a que o futebol me levou ao longe. Um deles será certamente aquela bancada do Etihad, em Setembro de 2014, na tarde em que os adeptos do Chelsea tiveram a grandeza de despedir-se orgulhosamente de pé do adversário a quem deviam tudo o que são.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Calvary. Cru e ambicioso, mas errante


O carisma transbordante de Brendan Gleeson e do seu mau feitio irlandês conquistou-me cedo e nunca me chegou a desiludir desde aí. Para mim, ele consta daquele punhado de nomes cujos filmes já valem sempre por si. Apesar das muitas horas a vê-lo, confesso que há três anos ainda me rendi mais profundamente: The Guard, apesar de relativamente fora de radar, foi um dos filmes sensacionais de 2011, uma cáustica e irresistível alegoria negra que o emprestou absolutamente à sua praia. Com uma avenida escancarada para brilhar, Gleeson, como é bom de ver, não vacilou, assinando um filme de culto. Foi, por isso, natural que, no momento em que se anunciou nova colaboração entre ele e o realizador-argumentista John Michael McDonagh, o meu reflexo tenha sido instintivo. Durante os últimos três anos, Calvary foi um dos meus filmes mais honestamente aguardados.

Como na grande maioria dos casos em que a bitola ficou muito alta, a sombra, no entanto, exerceu uma influência nociva no subproduto. Calvary conta a história de um padre de aldeia genuinamente bom, que será forçado a enfrentar o mau fundo de quase todos à sua volta, e a lutar contra circunstâncias perversas e irracionais, que o perseguem, ainda que nada tenham a ver com ele. É, sob uma análise justa, um filme com vários predicados. Não nos convence sempre, porque ora perde-se, mas completa-se de uma forma fiável e coesa. Todo o filme se rege sob o signo da ameaça de morte ao seu protagonista, anunciada de chofre, e acompanha a candura de espírito com que ele lida com o assunto, mantendo-se imperturbável à sua fé e expiando, até, as suas próprias feridas familiares. Temos, todavia, de esperar até ao final para reconhecer o alcance do argumento e o bom gosto de algumas opções.

O problema de Calvary é ser demasiado errante. Perder, como já disse, a noção do tempo e do que estava a fazer, com nuances redundantes, que foram travando o filme, momentos contemplativos e diálogos demasiado absorvidos em si mesmos. Faltou-lhe um desígnio orientador mais claro, cadência e chispa para levar a ideia a outros patamares, ainda que não tenha deixado de ser um filme ambicioso, no sentido em que consegue ser particularmente desamorável para o espectador (com uma vénia ao último terço) e agarra um tema fracturante - a pedofilia na igreja católica - para ser cru, sem ser bacoco ou moralista. Como, de resto, seria expectável, em virtude do que já mostrara, McDonagh voltou a escrever um guião com um potencial evidente. Pena que desta vez não o tenha conseguido concretizar.

Num elenco interessante, destaco a beleza cansada de Kelly Reilly, que não me tinha convencido nem um pouco há dois anos, em The Flight. Na pele da filha que foi abandonada por um pai assombrado, a forma alheada como pontua as suas cenas, com uma tristeza quase natural, venceu e convenceu. O veteraníssimo Michael Emmet Walsh evidenciou-se, igualmente, como um daqueles secundários carinhosos e cheios de cor. De Brendan Gleeson nunca saberei dizer mal e este, de resto, também não era o caso. Mesmo após a sinopse, estava à espera de algo bem mais próximo do seu natural carácter intenso e irascível. O filme é, porém, propositadamente preso pelas rédeas. É, nas linhas bíblicas, uma profissão de fé, um teste de vocação. Gleeson tem um porte de leão, mas o objectivo do filme é, pelo contrário, que ele voluntariamente se contenha. Que cumpra a sua via sacra. A performance tem empatia, mas a verdade é que não conseguimos deixar de a estranhar. Tal como o resto do filme, estamos sempre à espera que aconteça mais qualquer coisa que a defina.

Calvary merece consideração, quanto mais não seja por ser um filme inteligente, o que é um elogio sempre maior do que parece. É provocante, agreste, tem um óptimo ambiente e tem Gleeson, o que será sempre um seguro. Peca por ser tão ocluso. No fundo, é um filme sobre equívocos que acaba, ele próprio, por equivocar-se no caminho.

6.5/10

sábado, 6 de setembro de 2014

Toy Story


'El Madrid ha seguido buscando la fórmula cuando ya la había encontrado'
Valdano

'Si fuera yo quien mandara, a lo mejor no lo habría hecho así'
Ronaldo

Lisboa, 24 de Maio de 2014. Estádio da Luz. Minuto 110, final da Liga dos Campeões. O Madrid, ainda hipertenso, respira sofregamente, na adrenalina de continuar vivo. Aquele era um dos jogos que não tinha preço. Era a profecia do tamanho de uma nação inteira, conjurada nas chuteiras de Di Stéfano e almejada durante os 60 anos seguintes. La Décima. Jogada, por ironia, na primeira final da História entre equipas da mesma cidade. Que o sonho maior tivesse de ser conquistado ao Atlético era a derradeira e a pior de todas as perversões. Minuto 110. O Real, ainda lívido, nem pudera congratular o milagre que fora aquele empate, porque uma final continental não espera por ninguém e porque o rival dedicava-se a viver de faca nos dentes, à espera do mais pequeno deslize. Tudo à volta era guerra de nervos. Foi esse o momento em que um anjo da guarda saiu a voar.

Xabi Alonso resumiu-o tão bem quanto possível. Gracias por todo, Fideo. Nunca olvidaremos el zigzag de Lisboa. Num jogo espectacularmente simbólico para a História do maior clube do mundo, assombrado pelo prenúncio de morte e tenso em cada músculo, Angel Di María esmagou-nos um dia mais com a magia dos que já nasceram assim. Um, dois, três adversários pelo caminho, como se não fosse a melhor defesa da Europa, como se ele estivesse num palco só seu, iluminado por um holofote celestial. Se fazes aquilo numa final dos Campeões, podes fazer tudo o que quiseres na vida. Se fazes aquilo numa final dos Campeões e não te assinam um casamento vitalício, estás a lidar com loucos dos quais deves fugir. O mais incrível, neste caso, é que, para tantos e tantos outros, essa teria sido a jogada de uma carreira. Angelito fê-la três vezes durante essa noite quente de Lisboa. O mais incrível, aliás, é que ter decidido esse jogo não passou de uma nota de rodapé à sua época desconcertante.


Assistir à sua criatividade, à velocidade e ao seu jogo de pernas, à fantasia na extrema acepção da palavra, é o capítulo em que o futebol é menos jogo e mais arte clássica. Ao vê-lo, calha-me sempre lembrar de uma lenda que morreu dez anos antes de eu ter nascido. Curiosamente, partilhava com Di María a mesma candura de cognome: era Mané Garrincha, o ‘Anjo das Pernas Tortas’. Em miúdo, Garrincha foi vítima de uma poliomielite, que lhe deixou uma perna mais curta do que a outra e ambas arqueadas. Os médicos diziam que ele nem deveria conseguir andar; Mané escolheu ser o maior driblador de todos os tempos. Os defesas reconheciam que era impossível pará-lo, porque não compreendiam realmente como é que ele funcionava. Em galope, como que reconheço em Di María esse enigma genial, uma certa supra-distrofia que ele impinge a cada quebra de rins, a cada vírgula, a cada rabona, qualquer coisa de cabalístico que o torna vertiginoso, deslumbrante e imparável.

Pode não ser literal, mas não será chocante dizer que Angelito foi o futebolista de elite internacional que mais evoluiu nos últimos 5 anos. É fácil lembrar-se do miúdo franzino e malabarista que chegou ao Benfica, na pele de tantos outros, e constatar, ao contrário desses anónimos, as enormidades que ele soube beber ao longo dos anos. Jesus, Mourinho, Ancelotti, é verdade que teve sorte com os treinadores e com as eras de Benfica e Real, mas o que conseguiu assimilar de ano para ano foi, sob todas as medidas, extraordinário. Da canhota vertical no losango de Jesus, à extrema-direita açucarada do ataque de Mourinho, até, finalmente, ao visionário e subversivo médio-interior de Ancelotti. É um caso honestamente raro de um futebolista que se educou cada vez mais, sem chegar a capar um pingo do génio nato que o notabilizou. Passou, simplesmente, a aplicá-lo melhor. Sempre melhor.


Com Ronaldo e Modric, Di María foi a trindade a quem o Real deve a Décima pela qual tanto esperou. Aos 26 anos, com todo o melhor ainda pela frente, e depois da mais espectacular das metamorfoses tácticas, Angelito tornou-se num futebolista virtualmente impagável. O Real, como sempre... entendeu ao contrário. Na primeira esquina, pegou, pois, em nada menos do que 80 milhões de euros e comprou outro para o seu lugar. Às vezes acho que a direcção merengue sofre de uma condição médica qualquer e que, por isso, mais vale relevar a verdadeira esquizofrenia que se pratica em Chamartín a cada Verão, tal como se trataria qualquer doente grave que é inimputável.

Depois de anos de derrotas ou de vitórias de guerra, o Real encontrara finalmente a sua paz. Um treinador brilhante e senatorial, futebolistas notáveis e articulados numa sinfonia quase perfeita. Bom futebol, compromisso, estabilidade, reconhecimento e moral, tudo isso na antecâmara do ataque ao campeonato e à época dos 5 troféus para ganhar. Nas palavras de Valdano, o Real tinha mesmo encontrado a sua fórmula. Como um perfeito sociopata, porém, Florentino Pérez não pôde controlar o impulso irreprimível de gastar 100 milhões em craques que o Mundial fez famosos, para poder desterrar, em menos de um piscar de olhos, autênticos pilares que lhe tinham acabado de oferecer tudo em bandeja de prata. A gestão desportiva do Real é um pesadelo daliano qualquer, uma aberração tão incompreensível que olhar para ela deve deixar-nos mal-dispostos. Ver Xabi Alonso e Di María empurrados à porta da rua, simplesmente porque já não eram os brinquedos mais novos da estante, é triste, degradante e imbecil. É terrorismo futebolístico, é a linha imperdoável a partir da qual todo o respeito já se perdeu.

Nunca gostei do Real, mas habituei-me a gostar de toda a boa gente que lá estava e a torcer pelo seu sucesso. A minha pena é que ainda lá estejam outros tantos, sendo escusado falar de Ronaldo. Só espero que ele, ao menos, saia da loja de brinquedos antes de ser devorado por ela.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O United que vivemos


Ideológica e espiritualmente, o meu clube inglês será sempre o Liverpool. É daquelas coisas que eu não vi, que não experimentei, mas que sei que está certa. Não se explica, mesmo que eu já o tenha tentado explicar. Faço o salvo conduto, porque depois é inevitável ser honesto: a minha geração cresceu com outro gigante. Apesar de rivais insolúveis, aos olhos de um afficionado do jogo será sempre impossível hostilizar a outra nação vermelha de Velha Albion. O Liverpool é a minha utopia. Pragmaticamente, porém, a quota-parte dos meus sonhos acabei por vivê-la no Teatro onde eles moraram nos últimos 20 anos, derramados da batuta encantada do maior de todos os feiticeiros.

Escrevi, no texto em que me despedi dele, que nunca acreditei que o United fosse alguma vez ter outro treinador. Quem viveu na constelação mitológica que uniu a Catalunha a Moscovo, nos 10 anos que intervalaram os seus dois icónicos títulos europeus, vai sempre perceber. Esse United foi muitas coisas: um cruzamento do Beckham, um passe do Scholes e um pique do Giggs; foi aquele golo do Solskjaer, no fim duns descontos que duraram mais do que algumas vidas inteiras, e foi o recorde de títulos; foi ver crescer à nossa frente a lenda do novo Milénio, there’s only one Ronaldo, e foi cada tarde inesquecível sob o sol frio de sábado, em Old Trafford, enquanto a Premier League se tornava, de vez e para sempre, no maior espectáculo do mundo. Esse United foi muitas coisas; nenhuma, porém, maior do que Sir Alex Ferguson.

Diz-se que os homens passam e o clube fica, mas a verdade é que há homens que nunca passam e clubes que não ficam, pelo menos como eram. Era inevitável que, depois de Ferguson, se estranhasse, se duvidasse, que doesse. Confesso, no entanto, ter desconfiado que a sua plenipotência seria suficiente para quase tudo, que o seu vulto podia remediar até a sua própria partida. Esse parece ser, porém, um dos raros desafios que o mestre não pôde suplantar. Moyes nunca foi um iluminado, mas a sucessão velada e a venerável estabilidade que lhe ofereceram não fariam adivinhar o maremoto que se sucedeu. O super-campeão em título, a equipa europeia com mais presenças na Liga dos Campeões, aquele monstro de Instituição que era, no fundo, o único United que conhecíamos, ruiu num desconcertante estalar de dedos, vulgarizado quase todos os dias da época, até ao humilhante 7.º lugar na grelha final. Nada nos preparara realmente para aquilo.

À equipa que, no próprio ano anterior, tinha obliterado a melhor liga do mundo, diagnosticou-se envelhecimento geracional e falta de renovação, especulou-se com a carência de compromisso e de ambição, contaram-se lesões e denunciou-se a falta de investimento, mas a Inquisição pública só devorou verdadeiramente um homem. No clube que conservara o mesmo treinador durante um quarto de século, Moyes não viveu para ver um segundo Verão, perdido num buraco negro existencial perfeitamente desamparável. Foi como uma epifania: quando alguém é demasiado bom, durante demasiado tempo, tende-se a achar que o trabalho é, afinal, muito mais fácil do que parece. Moyes percebeu que não da forma mais crua.


Se os clubes maiores têm uma benção, é poderem começar de novo sempre com a mesma ilusão. Independentemente do que aconteça, estará sempre no horizonte um Agosto de promessas. Este United tornou-se na hipérbole dessa ideia. Menos habituado a perder do que os outros, só havia realmente uma opção para o novo ano: que a Ira de deus, e dos diabos, se abatesse sobre a Europa futebolística. Tenho de admitir que participei da histeria colectiva, assim que se anunciou a primeira pedra. Depois do honesto enfado com o bom partido que era Moyes, o anúncio da chegada de Van Gaal foi quase comovente. Se me tivessem pedido 3 ou 4 nomes à altura da sucessão, o dele estaria sempre lá. Irascível, cáustico, louco, genial. Um dos poucos com tamanho suficiente para olhar o emblema de frente. A epopeia laranja e mecânica do Brasil foi só o reforço redundante de toda a expectativa. Van Genius e o United: era um romance feito no céu.

Nunca ninguém ganhou nem perdeu nada com um mês de época, e nunca é demais lembrar isso. É mais difícil, contudo, ficar indiferente ao rumo, quando não o vemos. Depois de uma pré-época idílica, sem mais, nem menos, o pesadelo recomeçou exactamente de onde tinha acabado, alheio a simpatias ou a paliativos quaisquer. Mais do que o desastre de resultados - 4 jogos, 0 vitórias, 2 golos marcados e uma eliminação pornográfica -, o que perturba é essa desorientação. O United habituou-nos a ser o modelo, o exemplo, a saber sempre o que fazer, de forma tão autoritária, quanto intrínseca. O United era a medida sob a qual todos se regiam, a que todos tentavam imitar. Para onde é que olhamos, pois, quando o farol se apaga? Sabemos que há talento, liderança, fome; mas vemos aquilo e é como se nem Van Gaal percebesse porque é que não está a funcionar. Isso é que é assustador. Ele, claro, tem sido igual a si próprio: instaurou uma táctica inortodoxa, gastou 200 milhões em reforços - acrescentando que, no Bayern, alguém o teria parado - e manteve o dom de dominar qualquer conferência de imprensa. O que não parece é haver forma de descobrir se o trauma é circunstancial, táctico, emocional ou filosófico. Tudo o que sabemos é que, à entrada do segundo ano sem ele, Fergie parece mais insubstituível do que nunca.

Van Gaal ainda tem tempo de sobra para fazer tudo bem, quiçá, até para lutar pelo título, como o próprio reclama. E continuo a gostar de pensar que ele é um homem certo para o lugar, porque é ali que pertence gente feita do seu carisma. Acredito que este United ainda pode ser um caso especial... pena que olhemos à volta e já não o consigamos reconhecer. A equipa que, pura e simplesmente, não tem um único defesa de elite, decidiu, no último dia, pagar a Falcão 42 euros por minuto para ser o seu ducentésimo avançado. Esta febre gatsbyana é justamente tudo o que o United nunca foi. Vi, há dias, a equipa com que Ferguson cilindrou o Arsenal, há irrisórios três anos atrás. 8-2 em Old Trafford. Acho que não dá para evitar o sorriso. Talvez este United ganhe, talvez um dia venha a ser uma grande equipa. O que custa, no fundo, é que nunca vá voltar a ser o mesmo.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Os poetas são imortais


'Carpe diem. Seize the day, boys. Because, believe it or not, each and every one of us in this room is one day going to stop breathing, turn cold and die. Make your lifes extraordinary.' 

Já vi O Clube dos Poetas Mortos muitas vezes. Desde a primeira, presto-me a um teste bastante particular: tentar ficar indiferente àquilo. Convenci-me de que, um dia, ia entrar a última cena e eu ia-me manter impávido e pensar: 'olha, já passou'. Talvez por já tê-lo vistos vezes demais, talvez por já não estar disposto, talvez por estar velho. Nunca aconteceu e, hoje, desconfio que nunca vá acontecer. Desde a primeira vez, com 14 ou 15 anos, e em cada uma das outras, que O Clube dos Poetas Mortos é um dos filmes da minha vida. Honestamente, acho que nem o dia mais cínico do ano podia-me livrar do nó na garganta que é ver Robin Williams a baixar a cabeça e a despedir-se dos seus miúdos uma última vez. Gosto de acreditar que serei sempre fiel a essa essência e que, até ao fim, terei sempre a mesma capacidade para me inspirar e emocionar com eles.

O Clube devia ser serviço público. Devia ser um plano curricular, devia ser obrigatório nas escolas. Porque duas horas daquilo ensinam-te mais sobre liberdade de pensamento e arte, sobre lealdade, ilusão e transcendência diária do que quase todas as aulas a que poderemos assistir na vida. Qualquer pessoa de bem dirá que eu estou a ser lírico, pueril, redundantemente sentimental. Eu tenho pena de quem assiste a uma obra-prima sem nunca a conseguir ver. O tesouro do cinema é essa capacidade para deslumbrar, para ensinar, converter e inspirar, alheia à forma e à duração, ao entretenimento e ao politicamente correcto. Duas horas daquilo contagiam-te mais para o mundo do que uma carreira de boas decisões. O Clube dos Poetas Mortos é o tipo de filme que se faz uma vez na vida. O tipo de filme depois do qual é uso dizer que já se pode morrer descansado. Essa é provavelmente a única mentira a seu respeito.

Ao contrário da maioria das pessoas, as minhas memórias mais orgulhosas de Robin Williams não serão as gargalhadas do ícone que arriscaria tudo por elas, nem a comédia e a excelsa carreira que ele aí construiu. Claro que não posso ser estranho a isso, ou não tivesse crescido com a omnipresença de um Papá para Sempre, nos domingos à tarde da SIC, entre todos os tantos outros, mas nunca o poderei recordar sem ser pela sua grandeza injustamente desconsiderada enquanto actor dramático. Os grandes intérpretes fazem quaisquer personagens. Mas tenho para mim que determinados papéis não se podem transcender com bons actores, mas apenas com boas pessoas. Robin Williams era alguém que criava tanta estima no ecrã, que jamais nos podíamos distanciar ou, sequer, duvidar de que aquilo era sempre coisa dele, do coração para fora. Não da boca, como os outros.

É redutor que o lembrem como cómico porque, no fundo, ter piada era só uma ínfima parte do seu imensurável carisma. O que ele praticava era o humor enquanto terapia e expiação, prontificado a contar uma piada para salvar qualquer situação, qualquer drama e qualquer mal do mundo. Era o humor enquanto expoente emocional, o humor filosofal como forma de cuidar, como ponte para ligar as pessoas. Para mim, o humor de Robin Williams será sempre isso, aquele sorriso cúmplice, indistinto e desconcertante com que ele quebrava cena sobre cena, enquanto nos convertia ao que era verdadeiramente importante, como John Keating, do alto de uma mesa nos Poetas Mortos, ou como Sean Maguire, nos fundos de um gabinete em O Bom Rebelde, outro dos meus pesos preciosos, e que lhe valeu o inominável Óscar, que ele mereceria por decreto.

No fim, cruel é pensar que alguém que se dedicou a emprestar alegria e inspiração a tanta gente tenha acabado sem uma nem outra para si próprio. O suicídio é a maior perversão do mundo porque é a mais equivocada. Desde ontem à noite que dou por mim a pensar na quantidade deles que podiam ser evitados, se as pessoas tivessem, ao menos, uma segunda chance. Se pudessem voltar no dia seguinte para ver o impacto que tiveram na vida dos outros e pudessem medir tudo uma última vez. No fim, o mais ingrato é que ninguém lá tenha estado para obrigá-lo a subir a mais uma mesa e a ver as coisas de maneira diferente. No resto, o que ele deixa são as palavras e as ideias que, independentemente do que nos disserem, podem mesmo mudar o mundo. Nesse clube viveremos sempre juntos. Oh captain, my captain...

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Sonho de uma noite de Verão


'Miúdos, eu tinha 23 anos e já tinha visto umas coisas. A Copa, mesmo assim, foi um sonho especial muito antes de acontecer, foi, no fundo, o sonho bonito que eu nunca iria cumprir. Para quem ama isto, o Mundial do Brasil era a proposta irrecusável, a mera sugestão que, nos anos que a antecederam, se dedicara a inebriar-nos. A Copa era o calor e todas as cores, era o futebol do copo na mão e do samba nos pés, para ver na praia com um sorriso na cara e fazer aquilo de lés a lés, até às noites longas que nunca acabariam verdadeiramente, recheadas de todas as promessas do mundo. O Mundial do Brasil era a história que só um louco não quereria viver. Como em qualquer idealização, porém, tendemos quase sempre a romantizar tudo de mais. Queríamos tanto, que aquela Copa já nos devia tudo antes sequer de começar. Racionalmente, ela jamais poderia ter vivido à altura das expectativas. Miúdos, eu tinha 23 anos e já tinha visto umas coisas. Nunca tinha visto nada assim.

Não tive tempo para escrever remotamente tudo o que gostaria, e nunca me vou perdoar por isso, apesar das muitas horas dedicadas a rascunhar três jogos por dia, com o Spotify a derramar-me Bossa Nova nos ouvidos, com a graça de quem diz que gosta de mim. Todavia, nas forjas da Terceira Revolução Digital, este foi o Mundial mais universal de sempre, a Copa do Facebook e do Twitter, dos bits, dos vídeos e dos memes. Foi a Copa mais democrática, mais instantânea, mais popular. Foi o Mundial total. Não sei como é que será o futebol quando me estiverem a ler, daqui a muitos anos, mas foi aqui que começou. Para a minha geração, o Brasil foi uma ponte entre o fim da Faculdade e o primeiro trabalho e foi, portanto, a minha última oportunidade antes de ir ser adulto. Vi os jogos 'todos' e, ainda que a 7000 km de distância, vivi irresistivelmente a intensidade desse turbilhão, com aquele fascínio de quem só quer fazer modesta parte de algo demasiado deslumbrante. 

Sim, miúdos, eu 'estive' no 7-1. Aberrado à frente da televisão como qualquer ser humano normal, numa experiência extra-corporal limítrofe, como se o tempo tivesse parado à volta, menos para aquela máquina sociopata alemã, Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!, como o celebrou um Álvaro de Campos em febre, que eu espero que vocês ainda leiam na escola. Esse não foi o melhor jogo que vi na vida, mas foi, por certo, a minha experiência futebolística mais incomparavelmente radical. 4 golos em 6 minutos que eu, por mais anos que viva, nunca vou conseguir explicar, numa demolição filosófica e emocional como não houve antes nem depois, no futebol e provavelmente na vida. Nesse dia, Belo Horizonte incendiou como Roma. Foi o mais próximo que estive de ver a Bíblia a acontecer.

Sim, miúdos, também vi a Costa Rica, aquela casca de alma confinada ao Pacífico, eliminar três campeões do Mundo, um da Europa e outro quase. O Brasil não teria sido o Brasil sem essa história de heróis. A Copa América foi ganha pela Europa, mas nunca me esquecerei do México e daquele coração imensurável, medido em cada defesa de Ochoa e em cada festejo maior do que a vida del Piojo Herrera, a figura mais apaixonante que lá viveu. Do Chile hipertenso que deu o golpe de misericórdia na melhor selecção de sempre e ficou a uma barra de replicá-lo ao Brasil, e da inglória do Uruguai, na campanha trágica em que Suárez foi deus e voltou a ser um vampiro. Nem dos Estados Unidos, o soccer miraculoso que sobreviveu a um grupo da morte, até desembocar no melhor jogo da prova, o mais que improvável América-Flandres, numa noite esquecida de segunda-feira em que Tim Howard se tornou imortal. Na coroa, claro, a Colômbia. Que perfume, por deus, o mais irresistível de todos os rebeldes, na graça de um predestinado, meio Zidane, meio Riquelme, o herdeiro profético dos sagrados #10 da História, de quem hoje vocês já muito devem ter ouvido falar. James, com R.

Os americanos que chegaram mais longe foram os que sacrificaram mais, ou quase tudo. O Mundial do Brasil foi o Mundial em que o Brasil se esqueceu de o ser, perdido na neurose do Hexa, o Mundial em que trocou tudo por uma táctica militarista cujo único crédito foi, durante 18 meses e até ao último dia, um único nome de craque tropical. Neymar era o último vestígio do canarismo; quando partiu ou, em boa verdade, o partiram, a centelha foi engolida por um breu capaz de devorar 200 milhões de nação, a mesma que, depois de todas as manifestações, orou o 'Vai ter Copa', e cantou o hino mais carnífice a fundos pulmões, com a ilusão destilada nos olhos. No fim, todavia, ingrata e irremediavelmente, este foi o Mundial de todos menos do Brasil, que dele se envergonhará até ao dia do Juízo Final, ainda que eles achem, com propriedade, que esse já o viveram. 

A Argentina teve a certeza absoluta de que tinha chegado a sua hora, com o Messias, no Brasil e contra a Alemanha, um ritual maquiavélico para vingar um quarto de século inteiro, coroando o Príncipe, no mais perverso de todos os palcos. A miragem provocou mas, quando chegou a hora, esfumou-se no abismo da realidade. A Argentina foi sempre um gigante de pés de barro que, honestamente, não mereceu metade do que lhe aconteceu. O fim desfez-se na derradeira desolação, desonrado na desgraça da mais imperdoável de todas as bolas de ouro. Adoro aquele povo, adoro os melhores hinchas do mundo, que o foram mais uma vez, dime lo qué siente, adoro-lhes o Deus e, noutra década qualquer, estaria devotamente por eles. Mas não era a hora. Os monstros latinos foram os secundários do filme. Também é por isso que ele foi especial.

A Copa América, não obstante, ficou na Europa. Não obstante as baixas incontáveis. Sim, miúdos, também vi o 5-1, no dia em que Van Gaal deu uma parte de avanço antes de assassinar a maior selecção que já jogou, no dia em que Robben espantou os espíritos de outra vida e se vingou de Casillas, um desmoronamento lendário onde achámos, pueris, já ter visto tudo o que havia para ver. Afinal, esse momento estonteante da História, à luz da monumentalidade do resto, pareceu depois quase vulgar. Sim, miúdos, Portugal também fez feio. Impreparados, teimosos e vagamente decadentes, caímos tão lívidos como os outros pardais. Não tivemos história; o segredo é que também não tivemos muito tempo para nos lembrar disso. A Copa não esperou por ninguém. Imaginem a viagem que isto foi. A Inglaterra jogou como nunca e perdeu como sempre, a Itália deslumbrou e foi embora tão rápido como lerem esta frase. O Inglaterra-Itália, contudo, entre dois precoces, foi um dos verdadeiramente maiores. Vi-o com uma garrafa de whisky e com grandes amigos a um sábado à noite, a contemplar da única maneira possível o último bailado de um dos meus maestros sagrados. Se calhar já ninguém se lembra, mas, nesse dia, Pirlo fez uma assistência sem tocar na bola e desenhou um zigue-zague de livre de propósito até à barra, só porque nunca foi deste mundo. Que honra beber à tua, Andrea.

Os europeus que se pareceram safar, foram pouco menos do que isso. A Bélgica, menina dos olhos, só fez o jogo mais especial, mas ficou-nos a dever o resto. A Suíça esvaiu-se fácil, Fernando Santos ainda hoje não acredita no que lhe aconteceu. Valeu-nos a Grande Armadilha de um oclumante, um mago negro em pessoa que assombrou quase tudo o que lhe apareceu à frente, com os cheque-mates mais estapafurdiamente geniais que vi na vida. Van Gaal fez coisas no Brasil que ninguém vai fazer 20 anos depois dele. O futebol são onze contra onze mas, no fim, sabemos bem quem ganha. Foi a glorificação de uma geração bestial, tão melhor do que todos os outros que nos deixou quase comprometidos. Não gosto da Alemanha, mas ter rivalizado Neuer, Lahm ou Schweinsteiger será para sempre um privilégio. Houve tempo até para que Herr Klose firmasse a posteridade nos livros. 12 anos a marcar golos, 4 meias-finais, 2 finais, até ser finalmente feliz. O futebol encontra-nos sempre. A primeira fase do Brasil foi tão boa que até hoje não vos posso garantir, com certeza, que aconteceu mesmo. Mas aposto com vocês, miúdos, que ninguém voltará a ver em directo uma igual. Depois, foi sobreviver na selva e, na selva, vale sempre a lei do mais forte. Quando ganha o melhor, encontramos sempre alguma paz.

Este foi o Mundial dos guarda-redes. Neuer, Ochoa, Navas, Howard, já falei deles, mas igualmente de M'Bolhi, o sopro de vida do deserto africano que podia ter escrito uma História diferente, naquela Argélia que foi o único verdadeiro adversário alemão, e ainda de Bravo, Romero, das lágrimas de Júlio César e da substituição de Krul. O Mundial podia ser condensado naquele minuto 120 do Holanda-Costa Rica e sintetizaria toda a explosão de génio, loucura e feitiçaria que o pintou. Com o desplante de Van Genius, omnipresente, omnisciente e omnipotente no banco, o Mundial também foi o voo estratosférico de Van Persie, numa caderneta que só acabou na tesoura da final, passando pela arca do tesouro do Bandido Jamesito, de primeira ao Uruguai, claro, mas com aquele poema ao Japão, mais ainda. Foi o tiki-taken alemão, o chocolate colombiano, o contra-ataque francês e holandês, o futebol total mexicano e chileno, foi a vertigem de Neymar e Messi jogarem-no sozinhos e foi o vólei de Cahill, 34 anos e no seu último dia de vida internacional, corolário justo do carisma australiano e dos outros digníssimos eliminados prematuros, sem os quais isto nunca teria sido tão inteiro. Estar em casa de madrugada e ver um Honduras-Equador. Meu deus, que saudades.

Sim, miúdos, ainda vamos falar da Copa muitas vezes. Sempre que vocês me pedirem para ensinar o salto do Robbie, e o festejarmos com a dança dos cafeteros ou os abraços do Herrera, de cada vez que me perguntarem se o Van Gaal tinha um bola de cristal ou me pedirem, a medo, para voltar a contar os terrores da Alemanha. E eu sei que podia ficar a falar dela eternamente, quanto mais não seja porque ela vai mesmo viver até lá. Da minha parte, contudo, mais do que todos os jogos grandificantes e todo o êxtase, a única forma suficientemente justa de lembrar o Brasil 2014 será o brilho nos olhos com que vos vou recordar de cor cada pormenor, quando já for velhinho e isto já tiver sido tudo noutra vida. Como Snape respondeu um dia a Dumbledore, quando então me perguntarem 'após todo este tempo?', será a minha vez de dizer:

'Sempre.'

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Copa das Copas: os ases


1. James Rodríguez
2. Robben
3. Manuel Neuer


Neuer; Lahm, Hummels, Garay, Blind; Mascherano, Kroos, James; Robben, Muller, Messi.

Navas, Ochoa; Giancarlo González, Medel, Vlaar, Boateng; Bastian, Herrerra, Pogba; Cuadrado, Neymar, Benzema.


T: Van Gaal 
(Menção honrosa, por ordem: Löw, Pekerman, Jorge Luis Pinto, Miguel Herrera, Halilhodzic, Sampaoli e Fernando Santos)


Revelação:
M'Bolhi (Argélia); Fabian Johnson (EUA), De Vrij (Holanda), Manolas (Grécia), Holebas (Grécia); Depay (Holanda), Celso Borges (Costa Rica), Aranguiz (Chile), Campbell (Costa Rica); Origi (Bélgica) e Enner Valencia (Equador).

terça-feira, 1 de julho de 2014

Copa, dia 18: a inevitabilidade da derrota


Alemanha 2-1 Argélia (ap)

Poucos teriam arriscado que o Alemanha-Argélia pudesse alguma vez durar mais do que a hora e meia obrigatória. Podia nem estar quebrado à partida, pela própria exigência física e mental desta fase da prova, mas a Mannschaft conservara os galões a brilhar e o entusiasmo da Argélia não parecia nunca poder patrocinar qualquer golpe. O melhor elogio a fazer à partida é que o 0-0 no fim do tempo regulamentar foi mais exuberante do que tantos outros jogos cheios de golos que um dia já vimos. E, afinal, não era à toa que os chamavam de Raposas do Deserto. Os argelinos tinham, de facto, um plano e a eficiência com que, não só anularam a Alemanha, como ainda a fizeram suar frio, passará sempre como uma das belas histórias deste Campeonato divinal. Ao fim e ao cabo, só mesmo aqui é que a Alemanha ir a prolongamento com a Argélia poderia não ser assim tão chocante. Os homens de Halilhodzic fizeram brilhantemente quase tudo o que estava no seu controlo. Para o golpe de teatro faltariam sempre um momento genial e uma estrela da sorte e esses é que, infelizmente, nunca chegaram. A Argélia resistiu enquanto pôde mas sabia que, no momento em que a disciplina começasse a soçobrar às pernas, estaria acabado. Os alemães também.

Os norte-africanos entraram no Mundial pela porta dos fundos, com uma derrota triste frente a uma Bélgica cinzenta, parecendo dar crédito aos que os velavam como os mais débeis do grupo. A transformação que se seguiu foi admirável. 6 golos em 3 jogos, um apuramento histórico a eliminar a selecção do treinador mais caro e um prolongamento ao adversário mais temível da prova. Hoje, Halilhodzic voltou a pensar tudo bem. Com a defesa baixa e a sobre-população ao meio, anulou todo o jogo interior alemão, jamais dando metros ao contra-ataque adversário, consciente de que, pelas alas, não chegaria o perigo. A chave do seu planeamento foi a capacidade de resposta. Com a Alemanha a usar a defesa mais alta do torneio, o bósnio plantou Slimani no meio dos dois postes centrais, soltando dois e três médios para as suas segundas bolas. As coisas saíram ainda melhores do que no papel. O avançado do Sporting fez uma exibição brilhante e, a espaços, caiu-nos o queixo de tão evidente estava a ser a exposição alemã. Os germânicos foram apanhados em contra-pé constantemente e não fosse a leitura prodigiosa de Neuer, hoje um verdadeiro líbero à imagem e semelhança de Beckenbauer, e podíamos ainda estar todos a fazer contas a um terramoto no Beira-Rio.

A Alemanha sai disto viva, como quase sempre, mas com a reputação razoavelmente abalada. A inaptidão da equipa para variar soluções quando lhe negam o plano principal, aliada à falsa segurança atrás - se, com defesas tão discutíveis, jogar tão alto já doeu contra a Argélia, imaginem o que aí vem - deixaram um mal-estar muito real. A Alemanha saiu do pedestal e teve de começar a sofrer muito antes do que se podia antecipar, com dúvidas que, ainda por cima, são estruturais. Desde logo, os laterais são um problema grave e capam a equipa de toda a profundidade. Dificilmente manter defesas adaptados pode ser a solução. Depois, jogar tão alto com estes centrais também parece pouco razoável. É bom lembrar, no fundo, que se estas são ideias de Guardiola, esta não é, pelo menos, a defesa do Bayern. Por sua vez, à frente, a passada de Reus faz muita falta e a confirmação de que Ozil está a passar ao lado disto é a outra pior notícia. Ficar a contar com remates a 30 metros e ter fé em Muller augura coisas más. Não é por um jogo que se pode pôr tudo em causa e, no fim, a equipa bateu o adversário por KO, mas certo é que esta já não é a equipa que pareceu imaculada a devorar Portugal e que se acumulem tantos indícios dá, pelo menos, que pensar. Isso e saber que a França não é a Argélia.

ARGÉLIA - No Mundial dos grandes guarda-redes, M'Bolhi vai embora mas fica no panteão. Irredutível sempre, foi na fase do tudo ou nada alemão que se deixou brilhar exponencialmente, com paradas cada vez melhores. Também concorre a melhor defesa do torneio, por um tiraço de Lahm. Não merecia que o castelo tivesse ruído naquele golo sem querer. Slimani sai tão valorizado como devia deste Campeonato do Mundo. Muita raça, muito à vontade de costas, ainda mais perigoso a encarar. Foi o homem perfeito para o trabalho e tornou o plano de Halilhodzic tanto mais notável. Faltou o golo de ouro. Halliche, a segurar o forte, Ghoulam, pela mescla entre sacrifício e perigo, na lateral-esquerda, e Feghouli, pelo talento livre nas costas do avançado, como tanto doeu aos alemães, foram as outras figuras.

ALEMANHA - Todas as odes para Manuel Neuer. Não fosse o melhor guarda-redes do mundo tão bom em áreas tão incomuns (jogo de pés, antecipação, presença fora da área) e esta seria certamente uma história diferente. As chapas icónicas deste Alemanha-Argélia serão indiscutivelmente as suas saídas a toda a força para cortar adversários na meia-lua. Num jogo muito mau dos interiores e dos falsos extremos, sobressaiu Phillip Lahm. Foi só quando Low finalmente libertou o capitão do estigma guardiolista, e o devolveu à ala-direita, que a equipa cresceu de forma instrumental. Khedira também entrou muito bem, na mesma lógica. Mais vertical a transportar do que qualquer um dos outros médios, foi determinante para sabotar o plano argelino. Finalmente, Muller, porque é um dia tão bom como qualquer outro para reafirmar que faz mesmo tudo, tudo bem.

Copa, dia 18: a altura da tarefa

 

França 2-0 Nigéria

A conferência UE-África acabou em bem mas deu muito, muito mais trabalho do que se poderia estar à espera. A França resolveu os seus problemas com menos dramatismo do que o seu adversário de sexta-feira, mas a Copa deliciou-se com o seu caos e insistiu em provar mais uma vez que não há ninguém que ainda possa dormir descansado. Valeu à França o temperamento e responder alto como se pedia.

Começo pela Nigéria, que provou até ao fim o porquê de lá ter merecido estar e o porquê disto estar a ser uma coisa tão genuinamente boa de ver. Já a tinha considerado como uma das surpresas mais subvalorizadas da prova, isto porque os homens de Stephen Keshi passaram mais ou menos incólumes num grupo onde eram necessariamente da Bósnia as maiores responsabilidades. Depois, "reduziram" a Argentina a Messi, mas como por estes dias isso vai sendo normal, não parecia realmente que o TGV francês pudesse acabar fora dos seus carris. No Mundial, todavia, é tudo muito menos claro do que isto. A Nigéria entrou com uma óptima postura, no fundo aquela que já nos tinha mostrado, e a França assustou-se um pouco com as próprias circunstâncias. Afinal, o peso estava todo de um lado, afinal agora é sempre e só a doer. Num ápice, baralharam-se os estatutos e precipitou-se um equilíbrio em campo que os africanos muito gratamente decidiram abraçar. Mesmo sem densidade táctica, nem processos particularmente idealizados do meio-campo para a frente, a Nigéria foi descomplexada e solidária, e isso foi tanto quanto bastou. A equipa dividiu as oportunidades na primeira-parte e entrou fortíssima das cabines, mirando Lloris à bomba, e deixando os franceses em visíveis dificuldades. Que o golo não tenha surgido aí, para uma equipa nitidamente emocional, foi o princípio do fim. Assim que o tempo começou a fugir, a Nigéria como que se constrangiu com a própria competência. Não sabendo o que fazer, baixou e convidou o adversário. Há convites, como todos sabemos, que não se podem fazer.

A França só nunca pareceu totalmente em cheque porque, neste momento, terá o onze titular mais forte da prova. Apesar da boa réplica nigeriana e apesar da extrema dificuldade francesa em definir no último terço, a defesa manteve o nível altíssimo e o meio-campo nunca deixou de ser capaz de acelerar e abrir. Não é como se o jogo tivesse estado sempre no bolso, porque esta França renovada ainda não tem esse tipo de cinismo, e a Nigéria podia ter contado uma história diferente, mas essa impressão subsistiu no desenlace. O grande problema era a desinspiração total na área e essa resolve-se quase sempre, pelo menos para quem tem o tipo de recursos gauleses. Claro que não é recomendável deixar as coisas por decidir, mas a verdade é que o tempo jogava a favor da França. Assim que a Nigéria se assustou com a sua própria sombra, os homens de Deschamps reagiram por automatismo. Cresceram, apertaram e decidiram. Não podia ter sido de outra maneira. Por mais impensável que isso fosse há três semanas, serão eles os favoritos sexta-feira, no Maracanã.

FRANÇA - Pogba foi o melhor em campo, nem sequer pelo golo. O puto-maravilha até já tinha ido ao banco e andava a ser ofuscado pelo colega de sector mas, na linha do jogão que já tinha feito ao Equador, hoje não deu os holofotes a ninguém. Foi a âncora da equipa quando o vento soprou e a principal garantia da sua compostura, arrastando-a consigo, a acelerar e a abrir nos colegas. O golo era só uma questão de tempo. Matuidi manteve o nível altíssimo a seu lado, participando de acções idênticas, e confirmou um dado basilar: fazem ambos o melhor miolo do Mundial. O outro grande trunfo francês foi a ala direita, com Valbuena (2 assistências!) a rasgar ao meio e Debuchy a ir prego a fundo.

NIGÉRIA - No Mundial dos craques das redes, Enyeama. Para as estatísticas da FIFA, foi ele o guarda-redes mais valioso da primeira-fase e hoje a velha lenda do Football Manager não se deixou ficar por mãos alheias, segurando o destino enquanto pôde. Que tenha falhado no golo é duma injustiça desoladora. Numa equipa mais forte a fazer do que a pensar, a energia de Musa e Emenike fez viver o ataque. Ambrose, na lateral-direita, e porque Benzema não tinha de o acompanhar, foi um secundário de luxo.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Copa, dia 17: a Grécia não pôde ganhar à Grécia

 

Costa Rica 1-1 Grécia (5-3, agp)

Não sei se nalgum momento dos últimos 10 anos pensei realmente escrever isto mas, hoje, tive pena deles. Só houve uma equipa em campo a querer ganhar e a trabalhar realmente para isso, não porque foi obrigada, não porque teve de correr atrás do prejuízo, mas porque a isso se prestou desde o início, por honestidade e por convicção competitiva. Não sei se o percurso acidentado e a saída inglória lhe farão justiça mas, pese o seu ADN, todas as suas deficiências e o próprio preconceito generalizado, a Grécia deve ser lembrada como uma equipa que dignificou o jogo e que, não só mereceu chegar às eliminatórias, como devia ter estado entre as oito mais fortes. Os helénicos foram sempre positivos e foram melhores em três dos seus quatro jogos. Esqueçam tudo o que sabiam deles. Fernando Santos fez um trabalho notável com os recursos e a mentalidade que tinha à disposição e transformou a Grécia para muito melhor... só para vê-la ruir perante um adversário que usou os seus antigos segredos como um guião: muito esforço, futebol em metade do campo, um grande guarda-redes e um tiro de sorte, jogar em inferioridade e ganhar nos penalties. Nada pode ser tão irónico quanto o destino.

Não se pense que estou aqui a diabolizar a Costa Rica, porque isso jamais seria possível. Os ticos serão sempre a grande história deste Brasil. A equipa que nunca ninguém respeitou, mas que, do fundo do grupo da morte, chega a uns quartos-de-final após desterrar três campeões do Mundo e um campeão da Europa. Falaremos sempre deles com o carinho que eles merecem e a odisseia segue aí, viva. A minha única tese é que o futebol não pode ser dogmático, nem nos heróis, nem nos vilões. Na antecâmara, claro que teria sempre ratificado este resultado, mas jamais consigo ficar indiferente à competência. A relva é como o algodão, não engana. E, por mais que eu respeite a Costa Rica, hoje não era um papão que estava do outro lado, mas uma equipa real quanto baste, humana, uma equipa que merecia, pelo menos, alguma devoção de crédito. Depois do brilhantismo da estreia, tudo o que os homens de Jorge Luis Pinto tinham de fazer era sobreviver, a todo o custo, forjando a ferro e fogo que tinham nervo para levar as promessas até ao fim. Hoje, pelo contrário, era o dia para a Costa Rica voltar a jogar, voltar a ser alegre, voltar a mostrar porque é que nos conquistou. Seja por incapacidade, seja por mérito adversário, seja porque se convenceu do cinismo, não aconteceu.

Até ao golo pincelado de Bryan Ruiz, a equipa manteve-se a uma distância segura do jogo, especulando com as dádivas que ele lhe pudesse dar. Nunca pôs ideias em campo, nunca foi atrás da sorte. Quando a sorte por acaso lhe calhou, foi como se o jogo já tivesse acabado, o que só piorou com a expulsão de Óscar Duarte. A Grécia foi em crescendo. Carrilou sempre mais jogo, teve a única oportunidade da primeira-parte, sofreu contra a corrente e, depois, abateu um volume ofensivo em tempos inimaginável sobre o adversário. Os gregos têm um ataque algo primário, sem muita criatividade, mas com muita vontade e muito carácter. Sob todos os prismas, é difícil ficar indiferente ao que foram fazendo no Brasil, à valia da equipa e ao mérito de Fernando Santos. O golo nos descontos foi uma orgulhosa reminiscência muito sua, um vestígio do seu sangue perverso de tantas outras noites e, por uma vez, fez-lhes jus, deixando o cheque-mate suspenso no ar. No entanto, era só um presente envenenado. A Grécia ainda não deve ter percebido como é que não ganhou no prolongamento (24 remates contra 6, 57% de posse de bola...) mas, chegados aos penalties, só era, afinal de contas, o seu jogo para perder. Uma década depois de ter sabotado todos os que lhe apareceram pela frente, foi amoralmente no momento da redenção que a Grécia encontrou uma das suas mais dramáticas derrotas.

GRÉCIA - Holebas foi talvez o melhor lateral-esquerdo deste Campeonato do Mundo. Explosão, intensidade, técnica, um comboio verdadeiramente incansável com soluções técnicas de fazer inveja aos mais avançados. Brilhante. Lazaros, na extrema direita, foi o outro fórmula 1 da equipa. Com jogo de cintura e uma finta curta e objectiva, tem um pulmão insuperável e vende pragmatismo. Aos 37 anos, Karagounis correu 12km e encheu verdadeiramente o campo. A criatividade da juventude trocou-a pela maturidade táctica, pela capacidade de trabalho e pelos dons da construção a partir de trás. O capitão bem mereceu despedir-se de outra maneira. Muito bom jogo dos centrais também - Manolas e Sokratis - e peso sempre indiscutível de Samaras e das suas viagens menos ortodoxas pelo último terço.

COSTA RICA - A vitória tem um nome: Keylor Navas já era, com propriedade, um dos grandes guardiões deste Mundial. Hoje chegou-se verdadeiramente à elite, com duas defesas monumentais, a primeira a segurar o 0-0, a segunda a garantir os penalties que ele próprio viria a decidir, com a derradeira parada de ouro. Já dissera anteriormente que a Costa Rica pode não ter muitas individualidades, mas que tem a sorte das principais corresponderem. Hoje tal não poderia ter ficado mais claro, sobretudo quando a isto se juntou aquele bilhete delicioso de Bryan Ruiz.

domingo, 29 de junho de 2014

Copa, dia 17: corazón partío

 

Holanda 2-1 México

Foi o que de mais parecido este Mundial já ofereceu a um episódio da Guerra dos Tronos. Estava tudo bem, era como se já tivesse acabado e, por uma vez, o herói ia ganhar. Ochoa voltara a ser um extraterrestre, houve a centelha de génio na frente e o resto era a obra do carácter único de uma equipa com a qual já tínhamos aprendido a sonhar. Sem a hipertensão com que contáramos, num certificado de maturidade e competência, o México ia mesmo concretizar serenamente um destino surpreendente mas que todos quantos o têm visto sabiam ser verdadeiramente possível. Os últimos cinco minutos são uma bastonada no corpo todo. A sensação de impotência foi grotesca, o requinte maquiavélico do fim engoliu-nos por dentro e restou-nos ficar a olhar para o ecrã adormentados, esmagados perante o choque. O sonho acabara-nos de ser arrancado ali, sem aviso e à traição, como numa armadilha crua que, afinal, nunca poderíamos ter ganho.

O jogo foi diferente do que se podia prever. Nem os mexicanos conseguiram emprestar-lhe a sua notável dinâmica, nem a Holanda soube ser elegante com bola. Pelo menos até ao golo de Giovanni, foi uma partida pragmática e renitente ao risco, com ambas as equipas, em 3-5-2, a conservarem linhas baixas, a pressionarem pouco e a privilegiarem o equilíbrio, ou seja, a mandarem gelo sobre o campo, num dos dias em que, de resto, o calor também foi uma das mais incontornáveis condicionantes. Num perfil mais próximo do que a Holanda sabe fazer, o México foi, contudo, mais perigoso. Com paciência e menos excesso, os tricolores perceberam que defendiam melhor do que o adversário e que, afinal de contas, o registo podia-lhes até servir melhor. O 1-0, apesar de não decorrer dum domínio claro, foi o corolário da única equipa que tinha tido efectivamente oportunidades para marcar.

É um lugar-comum dizer que os golos mudam as equipas, mas há, de facto, uma Holanda antes e outra depois do golo sofrido. Três jogos depois da goleada ao Campeão do Mundo, a Laranja é hoje uma charada táctica que começa a ser difícil de compreender. Van Gaal tem usado dois sistemas por jogo e rodado peças com uma compulsão que até aos jogadores me parece estranha de assimilar. Kuyt e Blind, por exemplo, jogaram hoje em três posições diferentes!?, o que é, pelo menos, bastante inortodoxo. Nesta alienação teórica, a Holanda pareceu, até ao golo mexicano, simplesmente convencida de que o tempo corria a seu favor, de que um golpe dos génios estaria sempre no fim da história. E estava certa, mesmo que por linhas tortas. Pelo que fizeram na última meia-hora, os holandeses justificaram a chance. Mesmo sem o compasso de outras tardes, a equipa foi com tudo o que tinha e acabou por triunfar nos seus próprios termos: pelo génio dos seus ases - melhor jogo de Sneijder no Mundial, mais o Robben normal - e pelo seu extraordinário sangue frio.

No segundo do empate, achei honestamente que o prolongamento era justo. Que se uma destas duas enormes equipas tinha de cair, pois que a outra sofresse e o honrasse o suficiente. O futebol, porém, tinha em mente outro tipo de sacrifício. Mais radical, finito. Definitivamente mais cruel. O adeus do México seria sempre um dia triste. Só não tinha de ser desumano.

MÉXICO - Deus Ochoa, ou 'Oshowa', como lhe chamaram os brasileiros na semana passada, fez mais uma partida inesquecível. Ir embora nos oitavos é como ficar em 4º nos Jogos Olímpicos: é já teres uma história, mas morreres na praia do reconhecimento. Não há ninguém no México que merecesse mais a qualificação histórica do que o melhor guarda-redes do Mundial. Mesmo que em apenas quatro jogos, porém, as suas paradas insuperáveis serão lembradas para a posteridade. Na próxima época, estará numa equipa à sua altura. Num dia de futebol ingrato, que tenha sido Rafa Márquez a fazer o penalty fatal é outra perversão. O capitão foi sempre uma bandeira desta campanha e, hoje, fez mais uma exibição quase perfeita. Que pena. Muito bom jogo de Guardado no meio, outro dos que sai bastante valorizado. E golaço de Giovanni dos Santos, naqueles lances de génio que, por mais interminente que seja a sua carreira, podemos sempre acreditar que moram por lá.

HOLANDA - Mesmo quando tudo se torna confuso, podemos sempre confiar na simplicidade do talento. Por um dia mais, Arjen Robben voou quase sozinho rumo às estrelas. Nunca me posso cansar de dizer que há muitos grandes jogadores, mas que ele é um dos excelsos predestinados. Foi o seu génio vertiginoso que guiou a Holanda à sua sorte. No momento mais sensível da equipa até agora, apareceu Sneijder. O Pequeno Genial tem andado muito distante do Brasil, num modelo que, de resto, também não sabe exactamente o que lhe pedir. Hoje, porém, desdobrou-se no que foi preciso e propeliu todos à sua volta, mais o grande golo. Depay é mesmo uma das revelações da prova e começa a exasperar pela titularidade. Mais uma exibição do suplente de luxo, na ala esquerda.

sábado, 28 de junho de 2014

Mata-mata


Onze da primeira fase [3-4-3]:  

Ochoa (México); 
Rafa Márquez (México), Medel (Chile), Óscar Duarte (Costa Rica); 
Robben (Holanda), Herrera (México), Matuidi (França), James (Colômbia); 
Messi (Argentina), Benzema (França), Neymar (Brasil)

T: Miguel Herrera (México)

Parte da alma do Mundial acabou anteontem para a posteridade, na energia inenarrável dos três e quatro jogos por dia e dos 32 sonhos diferentes em campo. O Brasil 2014 tem sido um espectáculo ainda maior do que prometeu: um jorro de futebol inacreditável, regado com uma média de golos lendária, um lugar de jogos históricos, de surpresas irresistíveis e de filosofias que morrem, de uma identidade muito própria, o naufrágio europeu aos pés do Novo Mundo, e um palco de ídolos que chovem como ases. Perfeito. Agora que retomamos o fôlego, contudo, é hora de dizer que hoje começa outro Mundial. Outra face do planeta futebol, porventura menos eufórica, mas brutalmente mais intensa, os jogos de nervos em que cada segundo mata ou morre, na relva onde já não há segundas oportunidades. Agora só há lugar para quem falar a sério. Ficam as apostas:

Brasil-Chile. O Brasil vai ganhar mas só porque tem mesmo, mesmo de ganhar. Depois duma fase de grupos amorfa, a Canarinha teve o azar de encontrar de chofre um dos mais terríveis segundos classificados. O Chile fará a vida negra a Scolari - vai marcar, nunca se vai descompor e um prolongamento não está fora da mesa - mas, mais pela magnitude do contexto do que pela sua efectiva superioridade, o Brasil está condenado a seguir em frente. Nem os apocalipses podem ser prematuros.

Colômbia-Uruguai. Acredito que o destino do jogo se escreveu no momento em que a FIFA puniu Suárez como ele merecia. Claro que menosprezar o Uruguai seria um erro imenso e, se há um sobrevivente no Brasil, é o conjunto de Tabárez; sem o vampiro, contudo, a equipa fica desterrada e literalmente sem presas. Não me parece, por isso, que possa responder àquela que é uma das três grandes selecções do Mundial até agora. Menos experiente, menos agressiva e menos cínica, a Colômbia é, no essencial, uma equipa brilhantemente idealizada, senhora de uma monumentalidade de talento que parece desafiar quaisquer convenções.

Holanda-México. Declaradamente a tripla dos oitavos, pelo nível excepcional que ambos estão a apresentar. É, aliás, criminoso que Holanda ou México tenham de ir já embora. A Laranja é aquele 5-1. Tem um treinador de classe planetária, uma equipa equilibradíssima e dois génios na forma das suas vidas. Ainda vice-campeã em título, é quem tem mais responsabilidades e será a teórica favorita. Honestamente, porém, digo sempre que será um 50/50. Não há um parâmetro do jogo em que este México não seja excelente (capacidade defensiva, coesão táctica, pressão, dinâmica do miolo, golos) e, no resto, estamos a falar de um coração gigante em forma de equipa. Os mexicanos são mais inocentes mas igualmente mais intensos, talvez piores no ataque, se calhar melhores no resto e nunca, nunca vão desistir. É este o jogo que ninguém pode perder. E sim, voto México.

Costa Rica-Grécia. O feel-good game da eliminatória. Duas equipas que não deviam cá estar mas que, por honesta competência, merecerão cada bocado do seu lugar ao sol. Pela rodagem, a favorita é esta Grécia, diferente de outros tempos, sempre assombrante mas, hoje, a jogar mais do que se pensa. Seja como for, este não é, por certo, o Mundial dos estatutos e ninguém o provou mais ostensivamente que os ticos. Vencedores sem derrotas do grupo da morte, com um futebol quente e atraente, os homens de Jorge Luis Pinto são a lenda maior deste Brasil e acredito que será ela a subsistir.

França-Nigéria. Os campeões africanos terão o prazer de despedir-se frente a uma das mais espectaculares equipas do torneio e um dos sinceros candidatos ao título.

Alemanha-Argélia. Segundo take da conferência UE-África e necessariamente o mesmo desfecho, até ao titânico embate franco-alemão dos quartos-de-final.

Argentina-Suíça. Messi resolve, ainda que sobre alguma curiosidade para ver como é que a Alviceleste, com tanto provar, se comporta perante o seu adversário mais exigente até agora. A Suíça é uma equipa positiva e talentosa que pode sempre pregar uma partida mas, sinceramente, a derrota com a França parece feri-la de morte. Os alpinos mostraram-se, aí, terrivelmente macios e desequilibrados em desvantagem, com o resultado que se sabe, e nunca puderam criar o élan que se lhes antecipava. Mesmo com um treinador primário e cheia de interrogações, o talento individual e o calendário parecem condenar a Argentina a mais um final feliz.

Bélgica-EUA. Que as odds estejam sempre a seu favor deve ser o lema dos belgas. A equipa mais antecipada do Brasil 2014 foi presenteada com o grupo mais fácil da primeira fase e a verdade é que ficou-nos a dever o bilhete. Sem uma visão colectiva e sem autoridade sobre o jogo, sem um único momento de afirmação cabal, os belgas viriam a fazer o pleno com base exclusivamente no talento abusivo dos seus jogadores. Os oitavos antecipam-se como o enésimo episódio da série. Os Estados Unidos fizeram um apuramento digno, mas são uma equipa de demasiado baixo alcance para transtornar uma Bélgica infinitamente mais talentosa e, ainda por cima, moralizada. Os homens de Wilmots chegarão longe antes de terem realmente de provar alguma coisa.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Copa, dia 15: os bem-aventurados


Estados Unidos 0-1 Alemanha

O dia fica indiscutivelmente marcado pela qualificação de duas equipas que, mais do que não serem favoritas, eram consideradas as mais frágeis dos respectivos grupos. Aqui, o feito dos Estados Unidos é tanto mais impressionante: num dos grupos da morte, os americanos deram conta de afastar um semi-finalista do último Europeu e a ainda melhor selecção africana, sem disporem de quaisquer recursos que nos fizessem acreditar que isso era minimamente possível. Um desfecho destes nunca pode ser linear e tem, sem dúvida, um sem número de condicionantes, nomeadamente o demérito dos mais fortes e um vestígio de sorte. De facto, os Estados Unidos usufruíram de ambos, nomeadamente na vitória impossível da estreia quando, sem merecerem sequer empatar, ganharam nos descontos, com um canto chutado do céu. Seja como for, nunca abdicarei do princípio de que quem cumpre, justifica-o sempre. O jogo com Portugal provou isso mesmo. A equipa estudou, foi solidária e, em boa parte, fez a sua própria sorte. Não me parece que os americanos possam sobreviver a qualquer eliminatória, mas a passagem é extraordinária. Depois do 3º lugar em 2006, e à sua devida escala, Klinsmann volta a dar cartas num Mundial.

Da Alemanha, ressalvar a inatacável altivez competitiva. Assim que se começaram a vilipendiar as possibilidades de um arranjo entre as duas equipas, que as qualificasse às duas, tive vontade de rir. Só quem não faz rigorosa ideia do que é mentalidade alemã podia assombrar-se com isso. Mesmo em ritmo de cruzeiro, Low bateu o homem de quem um dia foi adjunto e ganhou o grupo como se lhe exigia. Todavia, depois do apocalipse da estreia, é hoje menos líquido o alcance desta Mannschaft, ainda que estar entre os oito melhores tenha de ser uma mera formalidade. Uma nota obrigatória para Thomas Muller: 9 jogos, 9 golos em Mundiais, aos 24 anos. Tão discreto quanto surrealmente eficiente, é um avançado - assim, em termos latos - realmente bestial. A máquina não podia ter melhor porta-estandarte.


Argélia 1-1 Rússia

É um desfecho igualmente impressionante, mesmo que os argelinos chegassem ao jogo decisivo em condições mais favoráveis, a precisarem de um único ponto para concretizarem o sonho. Acontece que a Argélia era velada no grupo do Irão e das Honduras, como a tríade de selecções rotundamente piores a estarem presentes no Brasil. Os homens de Vahid Halilhodzic até se prestaram a chocar o mundo no dia inaugural, batendo ao intervalo a super-Bélgica mas, tanto a remontada, como esse penalty caído do céu, por entre um deserto de futebol, pareciam destinar-lhes a mesma sorte. Por acaso, Rússia e Coreia não fizeram melhores coisas, pelo que o segundo jogo, contra os asiáticos, acabou por ser o oásis das Raposas do Deserto. Halilhodzic mudou meia equipa e acabou com uma goleada impensável: foi a primeira vez que uma equipa africana marcou 4 ou mais golos num Campeonato do Mundo. Hoje, eram realmente os norte-africanos a chegar moralizados mas, mesmo nestes termos... do outro lado estava Capello. No global, será justo reconhecer que a Argélia não foi a equipa mais forte em campo. Esteve a perder, foi ressuscitada pelo seu grande guarda-redes - M'Bolhi - e só subsistiu com muita vontade, até encontrar a porta para o paraíso na cabeça de Slimani. O avançado do Sporting voltou a ser decisivo e fez História: este foi o primeiro apuramento de sempre da Argélia para uma segunda fase. Notável.

A Rússia sai pelos fundos e deixa em aberto o reinado de Capello, depois de tamanho falhanço. Tal como no Euro-2012, a equipa foi desfeiteada no último jogo dos grupos, quando tinha todas as condições para passar. Por uma vez, Capello teve honestamente azar. Os russos, sem talento visível, e depois de terem perdido o seu melhor jogador à 25ª hora, foram superiores aos respectivos adversários em todos os três jogos!, o que dá que pensar. Não muito melhores, mas mais inteligentes, melhor preparados, no controlo. A verdade é que todos os tiros saíram pela culatra. A equipa marcou menos do que devia, nunca teve sangue frio, sofreu golos verdadeiramente indigestos e, como se não bastasse, foi vítima dos erros imperdoáveis do seu guarda-redes, Akinfeev, um dos homens que certamente mais desterrados sairão do Brasil. No fim, porém, as contas são sempre cruas. Don Fabio chegou ao Brasil com os honorários de treinador mais bem pago da competição, a Rússia com os pergaminhos históricos e com o diploma de qualificada directa. Num grupo destes, nem com todo o azar do mundo podia ter acabado assim.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Copa, dia 14: a canhota dos ricos, a dignidade dos pobres


Honduras 0-3 Suíça

Num dos dias mais pacíficos do Campeonato do Mundo, com os destinos decididos ou razoavelmente encaminhados, o palco foi de duas figuras maiores. Depois do trauma napoleónico, a Suíça estava bem ciente da tragédia que era poder falhar, quando tinha uma passadeira vermelha estendida. O estado emocional da equipa, todavia, deixou muito cedo de ser um problema, assim que o seu pequeno touro meteu da direita para o meio e, a 25 metros, desolou as redes hondurenhas com um dos golos do torneio. Seria o início de um dia histórico para Xherdan Shaqiri. O criativo do Bayern voltaria a marcar por duas vezes, em unha e carne com o ponta-de-lança Drmic que, por sua vez, bisou nas assistências. Depois de quatro! más campanhas sucessivas, a pior de todas a não qualificação para o último Europeu, Der General Hitzfeld qualificou finalmente a equipa para as eliminatórias, naquela que deverá a ser a sua despedida, e frente ao próprio adversário que lhe sabotara os planos há quatro anos. A Suíça tem um plantel de muito bom nível e uma equipa bem organizada, que teve o mérito de saber valer-se do talento, sendo um justo qualificado. Ainda assim, a derrota com a França pesará sob qualquer julgamento e mancha no ar a ideia de que os suíços deixaram, na verdade, coisas importantes por provar. No papel, bater esta Argentina não é, na verdade, uma tarefa impossível, mas se sugerirem sequer dificuldades na transição defensiva, os suíços acabarão dizimados.


Nigéria 2-3 Argentina

Com a equipa já qualificada, Alejandro Sabella decidiu, mesmo assim, manter o onze argentino inalterado, certamente consciente do tanto que ainda tem a mostrar e de que todos os minutos podem ser úteis para engrenar. Por um dia mais, contudo, o suspeito do costume roubou a festa: este também já é o Mundial de Leo Messi. Numa equipa com pouco que a valha a não ser o talento cru, a Pulga tem-se dedicado a resolver jogo sobre jogo, como numa jornada incansável, em jeito de missão. Depois dos momentos assombrosos das duas primeiras jornadas, foi a vez de um Messi, hoje mais relaxado, servir um bis para sobremesa. A Suíça é superior a qualquer rival do grupo F, mas ainda não será exactamente o adversário que pode pôr tudo em causa. Seja como for, já sabemos que há Messi. E isso diz muita, muita coisa. O único parâmetro que se equivaleu ao #10 viria a ser a compostura nigeriana. De facto, os campeões africanos foram de ganas ao jogo, recuperaram duas desvantagens e, sinceramente, mereciam melhor sorte. A Nigéria, é bom lembrar, não era favorita à passagem e, não só se qualifica com dois clean sheets, como ainda jogou taco a taco com um dos candidatos. É, possivelmente, uma das surpresas mais subvalorizadas da prova. Não parece, contudo, possível ter estaleca para segurar o TGV que aí vem.


Equador 0-0 França

A França fez alterações e esteve na mesma em alta rodagem, tornando redundante o que já se sabia: a equipa sobeja talento, motivação e confiança (e até Pogba, que ainda faltava, já está em evidente crescendo). Só uma hecatombe pode prevenir que esteja, no pior dos casos, no grupo dos oito melhores. Só não ganhou hoje porque encontrou pela frente aquele que é, até ver, o mais altivo de todos os eliminados. Na crónica do jogo com as Honduras escrevi que, acontecesse o que acontecesse, os equatorianos já não envergonhariam ninguém. Hoje eles fizeram questão de provar-me verdadeiramente certo. Frente a um adversário tremendo, que quis mesmo ganhar o jogo, o Equador deu uma extraordinária demonstração de carácter, sobre todas as suas circunstâncias. À meia hora, a Suíça já ganhava por dois no outro campo, aos 60', Antonio Valencia expulsou-se  - a estrela foi, de muito, muito longe, o pior de todos - e, mesmo assim, foi irresistível a demonstração dos últimos 20 minutos. Em inferioridade, os homens de Reinaldo Rueda não só defenderam com tudo o que tinham (o guardião Domínguez foi uma das estrelas do torneio), como responderam para ganhar como se este fosse o seu Maracanã. É por equipas como o Equador que o Brasil 2014 está a ser um sítio tão memorável.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Amanhã


Amanhã há muitas coisas que não dependem de nós. Sermos muito melhores do que até agora é só a parte fácil. Precisamos de uma abusiva ajuda adversária e precisávamos, tanto pior, que os rivais directos, que tão mais capazes têm sido, decidissem, logo amanhã, deitar tudo a perder. O milagre do apuramento não é mais do que uma linha de equilibrismo impossível, em que a maior das fés se presta a deixar engolir pelo abismo da razão. Amanhã há muitas coisas que não dependem de nós, salvo a mais importante: escolhermos como é que queremos sair.

Amanhã é um dia para ganhar. Por uma vez, não porque nos vai levar em frente, não porque há uma História a fazer, mas porque precisamos de nos dar a esse respeito. Porque, mesmo se tudo acabar mal, deve acabar nos nossos termos. Aceito qualquer derrota, mas não aceito qualquer eliminação. Nunca fui jogador, mas não há nada que me confunda mais do que estar lá e não querer saber. Como é que é possível entrar na relva e ser alguma vez indiferente? Quem não joga para ganhar, não é mau profissional, é mau na vida. Se estar no Campeonato do Mundo com o escudo ao peito não for um argumento suficiente, espero que eles ao menos percebam o quanto são pequenos em relação ao resto. O país mais antigo da Europa joga no Brasil apenas o seu sexto Mundial. Gerações de enormes futebolistas, tantos tão maiores do que eles que lá estão, teriam morto pela chance deste Portugal-Gana, fossem quais fossem as circunstâncias. Lembrem-se que parte dos que ali estão não voltará a pisar um Mundial. Lembrem-se que, um dia, quando forem velhos e não vos sobrar mais nada, nem umas férias nem um salário para voltar, não vão querer olhar para trás e envergonharem-se da oportunidade que tiveram a sorte de ter. Representar o país não é vosso mérito; é vosso privilégio. Se vos faltar a vontade, lembrem-se que ela também não nos interessa para nada e tenham a hombridade de correr por todos quantos, no fundo do poço das probabilidades, vão vestir o verde e o vermelho e sofrer até que não haja milagre que nos valha, por todos quantos dariam tudo para lá estar no campo, a poder, ao menos, perder como homens.

Amanhã é um dia para não ser arrogante. Errámos muito, provavelmente para lá da salvação, mas não temos de errar até ao fim. Nunca é tarde para admitir e, fazê-lo, é a maior de todas as provas de dignidade. Consigo respeitar um treinador que quer ganhar com as suas ideias, jamais alguém que prefere perder em vez de mudá-las. Qualquer miúdo de 12 anos já fez o diagnóstico da Selecção. Não temos balanço, uma ideia, nem nada treinado. Não temos capacidade física, nem temos Ronaldo apto. É preciso lucidez para reparar o sistema, coragem para afastar os consagrados. Neste momento, Bruno Alves, Meireles, Veloso, até Moutinho, não têm condições de jogar. É preciso recorrer a quem tenha algo para dar a nível técnico, físico, táctico (Neto, William, Amorim, William, Varela, William, William, William). Se Ronaldo não pode defender, se nem é útil que defenda, requisitem uns vídeos do que Ancelotti inventou no Real. Não é física quântica.

Beto, João Pereira, Pepe, Neto, André Almeida, Nani, William, Amorim, Varela, Ronaldo, Éder. Um 4-4-2 nem sequer porque precisamos de muitos golos, que tem muitas mudanças, mas não porque precisamos de uma lição. Simplesmente porque esse guião e esses actores são aquilo que mais genuinamente nos pode servir agora. Que Paulo Bento, cujo trabalho sempre zelei, perceba que isto não tem de ser uma exibição marcial de lealdade, um hara-kiri irredutível, cuja grandeza só existe na sua própria cabeça. Pode não haver qualificação, mas que haja redenção. O seu serviço não está à cartilha de nomes que elegeu, mas àqueles que sempre respeitaram o seu trabalho. E esses merecem mais.

Amanhã é um dia para saber ganhar mas, sobretudo, para saber perder. Se houver milagre, pois que estejam à altura da transcendência que o tornou possível; decerto que os problemas não terão desaparecido por magia. E não queiram ser vingadores de conferências de imprensa, como se estivessem sozinhos contra o mundo. Mas se cairmos, por pior que seja, tenham respeito, por vocês e por nós. Não lavem roupa suja, não cacem bruxas, não ponham tudo em causa. Nem na derrota temos de ser um bando de perdedores. O eterno Sócrates, pai espiritual do Brasil-82, a melhor selecção que já jogou, disse uma vez que ser campeão é detalhe. Mostrem que jamais iremos embora sem uma luta e, se isto for o fim do ciclo, lembrem-nos porque é que vale a pena ter orgulho nele. Amanhã, no fundo, é tudo muito mais importante do que ganhar ou perder.