quinta-feira, 7 de março de 2013

Há ouro na televisão portuguesa


Um assombro.

O piloto ainda enganou, deixando-nos a meio caminho de qualquer coisa. A partir do segundo episódio, contudo, esqueçam lá isso, escorre-vos génio do ecrã para fora.

Odisseia é qualidade, qualidade e mais qualidade. É com propriedade, e sem sequer ter de se pensar muito nisso, um dos melhores programas da História da Televisão Portuguesa, até onde a memória nos permita chegar. O texto, o conceito, a ideia, a concretização, são todos de uma tal antologia, que meteriam Portugal no mapa dos Gervais desse planeta no instantâneo, viesse isto a chegar-lhes às mãos. Tem tanta qualidade, que me converteu já num defensor fanático do serviço público de televisão. Bruno Nogueira começou numa privada; se é preciso que a RTP tenha prejuízos de milhões para que se vejam em Portugal os Contemporâneos, o Último a Sair e, hoje, esta magnum-opus, quando a SIC tem o Formigueiro ao fim-de-semana, e a TVI um Chuva de Estrelas para famosos, pois que ninguém ouse defender o contrário. A inteligência, a criatividade, o vanguardismo e a televisão primeiro-mundista não têm preço.

A Odisseia são dois gajos amigos, javardos de culto, que, numa fase sombria das respectivas vidas, metem-se numa auto-caravana, e mergulham numa viagem sem data nem destino pelo Interior do país, numa jornada para se encontrarem. Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington interpretam versões ficcionadas deles próprios... não uma, mas duas. Toda a acção acontece numa narrativa paralela, em que à ficção da história se associa a ficção do making-of. Como numa portentosa matryoshka, Nogueira e Waddington - que foram os reais argumentistas da série -, passam parte da acção no escritório de criativos a decidir o que vai acontecer ao Nogueira e ao Waddington que estão a viver a história na estrada, tudo numa relação imediatista a "fazer de Deus": eles decidem um twist no escritório, e isso acontece na estrada, logo na cena seguinte. Mais do que isso: a própria acção central é interrompida constantemente pela equipa de realização e por constrangimentos de produção (com o staff a ser igualmente protagonista), e por eles a passarem de actores da história, para actores do making-of ficcionado, quais camadas do Inception. Não é confuso, e se parece, sou eu que estou a rabiscar uma obra-prima. Mais vale ir já ao link e nem perder mais tempo com este texto.

Nogueira e Waddington são magistrais (Nuno Lopes, secundário, é fantástico como sempre), mas a fusão da realidade e da ficção resulta para toda a gente. O humor, o ácido, a amargura, o absurdo, a javardice e o delírio são tão simplesmente génio em estado puro, destilado como se fosse fácil. M-o-n-u-m-e-n-t-a-l.

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