sexta-feira, 22 de março de 2013

O complexo de inferioridade que é maior do que nós


Dizia o David Borges, na SIC-Notícias, que estamos a assistir ao definhar desta geração de jogadores. Se falasse, o fatalismo era português. Há menos de um ano, estivemos a dois penalties de eliminar o Campeão do Mundo e de chegar à final do Campeonato da Europa. Deslumbrámos com o nosso futebol, cá dentro e lá fora, fomos uma das alegrias do Leste e o Ronaldo saiu de lá rei da Europa. 8 meses depois, porém, há quem já veja o fim da geração. Que coisa patética. Não somos hoje, como nunca fomos, uma selecção de fartos recursos. Temos poucos, mas, sorte da vida, até somos bons, e passámos os últimos 15 anos a provar isso mesmo, assim que acrescentámos capacidade competitiva para sobreviver às nossas limitações de sempre. Talvez esta já não seja a Geração de Ouro, mas continuamos a ter o melhor do mundo, um talento médio que mete respeito, continuamos a não falhar fases finais e estamos, "em título", nos quatro melhores do continente.

O que nos voltou a assombrar hoje, é o que nos assombra desde sempre: é a falta de mentalidade para os jogos feios. É uma coisa cultural, e é produtividade, rendimento, eficiência. Uma coisa que não temos enquanto país, enquanto povo, nem enquanto futebol. Em qualquer fase final, somos tão bons como os melhores. Transcendemo-nos, não sabemos fazer feio nos dias de gala. Mas nos jogos cinzentos das manhãs de fim de Inverno em Telavive, a responsabilidade engole-nos vivos. Somos uma equipa de rapazes catatónicos, que agonizam a passo, e que não parecem ter remédio a não ser deitar tudo a perder. Não é vedetismo ou falta de vontade, não é de propósito; é défice de educação, de atitude, de produtividade. Paulo Bento resumiu-o bem na conferência de imprensa: "não sabemos lidar com o sucesso." Não temos, realmente, bagagem de gente grande, estaleca para carregá-lo todos os dias. Também por isso é que devemos evitar baboseiras tão à portuguesa, como choramingar na antevisão que o jogo não era decisivo. Para nós, todos os minutos da qualificação são decisivos, porque não temos estofo para geri-los de outra maneira. Todas as oportunidades deviam ser boas para ter isso presente.

Quero crer que tudo há de acabar bem, como tem acontecido quase sempre, mas já achei mais. Há muita gente em má forma, há muita dificuldade do banco em instigar mudanças na equipa, e já chegámos a um momento em que estamos a brincar efectivamente com o fogo. Hoje, ao minuto 90, estávamos com pé e meio fora do Brasil, num grupo tão miserável como o nosso, e é bom que se perceba a dimensão dessa barbárie. Na terça-feira, não vamos ter acordado com a mentalidade dos alemães, mas é hora de alguém falar grosso naquele balneário, e gritar a toda a gente que a nossa velha história de máquina de calcular pode acabar estupidamente mal. Em Baku não haverá o exemplo de Ronaldo, mas, mesmo que sem método e sem mentalidade, com a faca nos dentes e em esforço, é bom que haja o exemplo de quem já aprendeu a ganhar.

O anticristo voltou de Paris para nos assombrar


A pessoalização da crise em Sócrates continua a ser qualquer coisa de extraordinário.

Já passaram duas vidas desde que ele se foi embora. Até ver, pelo menos, Sócrates não é ladrão, não roubou com a crise, não fugiu. Ganhou duas eleições, governou com os erros de quem governa, e chegou-se à frente até ao fim, até perder como tinha começado. Ao contrário do que se cavalgou naquela demagogia febril, que pariu às pessoas o demónio de que elas precisavam, Sócrates não era nem a raíz de todos os males, nem o seu fim, como se tem provado espectacularmente desde aí.

As reacções a este seu regresso à vida pública continuam, no entanto, a dar que pensar. O último par de anos está aí a gritar para nós, mas Sócrates continua a ser a besta negra primordial. O seu regresso é um exemplo notável do perigo do oportunismo, da instigação de ódio e da demagogia, nestes tempos difíceis. O país foi estupidamente martirizado nestes dois anos, mergulhou num buraco negro de austeridade recessiva, e tem vivido dos excessos próprios da política dos gabinetes e dos livros, estranha à rua e às pessoas. O Governo tem sido tão extremista, fraco e grosseiramente mal preparado como prometeu, e tem provado, a altos berros, que se elegeu exclusivamente à base dessa demonização individual, falhando, dia após dia, ponto após ponto, em tudo o que bestializava como culpa única do tumor que era Sócrates. Vimos isto tudo, e, porém, o que nos indigna verdadeiramente é a desfaçatez de Sócrates voltar a botar pés nesta terra.


Talvez Sócrates já fosse, na altura, mais problema do que solução. Mas a crise que era culpa dele, afinal não era. As medidas que podiam ser melhores, afinal não podiam. E nesta perversão irresponsável, própria do lixo que são as nossas elites políticas, caiu um Governo, agravou-se a crise, e, até hoje, só ficámos pior. Talvez Sócrates não fosse a solução para os nossos males. Por esta altura, contudo, também já não era mau termos todos percebido que ele não era o filho do diabo, e que afinal não havia nenhuma poção mágica.

Reconheço as falências de Sócrates, e estou longe de o idolatrar, tal como não acho que a política possa, alguma vez, ser um clubismo. Mas sei reconhecer um líder quando o vejo. Mais do que um excelente político, que o era, ele tinha esse instinto, era um natural. Que me perdoem os exorcistas do Socratismo, mas os bons serão sempre melhor opção e, à vista de hoje, Sócrates era um luxo. Se estamos tão chocados que ele vá falar na RTP, ao menos que andássemos a chorar pelo facto dos que ficaram para decidir a nossa vida não serem mais do que dois Jotinhas com o carisma e o nervo de uma folha de papel, que há 20 anos, e que se foda o país, já sabiam que ali se haviam de sentar, a brincar aos governos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

"Coisas de meninos"


"Quando me ligaram mais de uma, duas, três pessoas a dizer eu votei em ti e o voto apareceu noutro, decidi não ir [à Gala da Bola de Ouro]."
Mourinho

"Eu votei em Mourinho, sempre em Mourinho. Passou-se aqui algo muito estranho. Telefonei-lhe e disse-lhe que tinha votado nele. Não sei o que se passou."
Pandev

"Isso não me incomoda nada. Estamos a 48 horas de um jogo importante e só isso me preocupa. Trato esse tema com distanciamento. É uma coisa de meninos."
Del Bosque

As achas para a fogueira de Mourinho, sobre a Bola de Ouro, são o tipo de coisa genericamente mal recebida em todo o lado. É feio, e as pessoas não gostam de ouvir, nem mesmo as que gostam dele. É sempre uma questão de forma e de timing, não de conteúdo. Não interessa se ele tem razão ou não. Perdeu, está perdido, e o resto é mau perder.

Certo é que Mourinho, ao contrário do que muitos, com todos os espanhóis à cabeça, ainda parecem pensar, não faz coisas destas de graça, só por arrogância e por despeito. Faz porque parte crucial da sua agenda é que seja ele o congregador de ódios, e todas as horas são boas. Desta vez, em plena concentração da Roja, ainda saiu melhor. Manteve vivo o lume da rivalidade que se quer pacífica naquele balneário, e acabou a queimar para fora, de Del Bosque e dos catalães aos jornais espanhóis, que tiveram um espumante ataque de nervos, coisa que, para ele, já é só o bónus.

No entanto, Mourinho também não o fez só pelo jogo mental. Ao dar o corpo às balas, como sempre, um dos seus propósitos foi, definitivamente, alimentar o mais resiliente dos parasitas, como lhe chamou Nolan. Foi deixar florescer a ideia que já passou pela cabeça de toda a gente, mas que o politicamente correcto ordena que toda a gente auto-censure: a de que num método tão pré-histórico de votação, há evidentemente uma infinidade de espaço para a FIFA discricionar os votos como bem lhe apetecer. E se é justo dizer que as vitórias deste ano não foram um escândalo, também era legítimo esperar que tivessem caído para o outro lado. Tal como é fácil admitir que ganhar Messi e ganhar Del Bosque, bonecos aprazíveis e unânimes, que ficam sempre bem na fotografia, é bem mais confortável do que ter no palco gente barulhenta e inconveniente, ainda por cima de um país pequeno.

Os jornais espanhóis chamaram-lhe de tudo, de "patético" a "treinador mais roubado de todos os tempos." Curiosamente, meras horas depois, apareceu Pandev a dizer que sim, que foi um dos que lhe ligou a dizer que lhe tinham trocado o voto. E, em dois tempos, voltaram à tona Buffon, Rosicky ou Thiago Silva, que já disseram, para quem quis ouvir, que não votaram sequer em Messi. Mais um ror de capitães e seleccionadores de pequenos países a admitirem que nem um formulário lhes chegou às mãos, mas que, para a ficha, votaram nos vencedores.

Como sempre, só acredita na conspiração quem quer. O que não acredito é que alguém, em consciência, possa pôr as mãos no fogo pela FIFA.

sábado, 16 de março de 2013

O país dos segundos clubes


Nos jogos com os grandes, levo sempre a camisola. Nos outros nem sempre, basta-me ter as cores ao pescoço, mas nestes é uma questão de passaporte, é para ninguém ter de pensar duas vezes. Não haverá nenhum maritimista a quem nunca tenham perguntado: "E o outro clube?". Nos jogos grandes, a minha camisola é a resposta mesmo para quem não perguntou. Um dia, a falar a um jornalista sobre o seu segundo clube, o meu pai disse que o 1º era o Marítimo, o 2º era o Marítimo, o 3º era o Marítimo, e o 4º só não era, porque ter quatro clubes já era demais. Custa-me a entender que o clubismo não seja indivisível.

Ser do Marítimo foi sempre natural. Resultou da simplicidade de quem vai ao estádio, semana após semana, desde os 8 anos, pareceu intrínseco. Estranho era não ser do Marítimo, na verdade. Enquanto cresci, ser de um clube que não tinha nada a ver com o que existia à minha volta, só porque era maior, fazia tanto sentido como querer ter pais diferentes, exigir viver numa mansão ou desprezar a minha terra por não ser uma metrópole. O meu clube nunca foi uma escolha, porque o nosso lugar e a nossa família não se escolhe. Família estima-se, respeita-se e cuida-se, e tem-se, sobretudo, um infindável orgulho nela, porque é a nossa. Pode ser pequena, pobre e ter todos os defeitos do mundo, mas ninguém sai à rua à procura de uma maior.

Não tenho nenhum problema com quem é dos grandes, mas também não tenho nenhuma dúvida de que o futebol português seria infinitamente melhor sem essa febre doentia do biclubismo. Seria mais saudável, mais democrático, mais competitivo. Teria estádios mais cheios, maior identificação, maior rivalidade e maior sustentabilidade. Tudo o que é polarizado é um cancro, e não é à toa que estamos condenados a olhar com uma admiração envergonhada para o que acontece nos maiores países da Europa.

Não que o United, o Madrid ou o Bayern não tenham mais gente, mas, nesses campeonatos, quando eles jogam fora, jogam mesmo. As pessoas orgulham-se do emblema com o qual cresceram a minutos de casa, do clube dos pais, e dos pais dos seus pais, da casa que esteve sempre ali para eles, e que tem uma história com eles, e com quase todos os seus. Para mim, o futebol é pessoal, tem de ser. É essa identificação, é a proximidade e a militância, é acarinhar as cores de onde se nasceu, como se se estivesse a defender a nossa gente. "Ser campeão é detalhe", como diria o grande Sócrates. Há coisas tão mais importantes do que ganhar ou perder.

Em Portugal, tem-se pena de quem pensa assim. Este é o país onde ser exclusivamente do Marítimo, da Académica ou do Setúbal é ser saloio e merecer um olhar de condescendência. É que o português só se sente confortável se achar que é superior. Não tenho nenhum problema com quem é dos grandes, mas a obsessão com eles reflecte o nosso complexo de inferioridade enquanto país. É um sintoma do atraso de um Portugal sem auto-estima regional, que, quase 40 anos depois do fim da ditadura, insiste em continuar estupidamente bipolarizado. Neste retrato do país, morre aos poucos o futebol profissional em Portugal, como morre o Interior e a ultra-periferia, e, qualquer dia, tudo o que não seja Lisboa ou Porto, e a sua liguilha dos três do costume. Estamos todos muito ocupados a ser importantes.

2013: Os 10 filmes mais esperados

Depois de um ano fortíssimo como 2012, nada como uma lista dos mais apetecíveis da temporada que já está a correr. Pela amostra, 2013 também não deixará o crédito por mãos alheias.


10. Captain Phillips
Paul Greengrass, Outubro

Para começar, a história real do Capitão Richard Phillips, feito refém quando, em 2009, o cargueiro americano que comandava foi atacado por piratas, ao largo da Somália. Conhecido pelos filmes Bourne, e nomeado ao Óscar pelo magnífico United 93, Paul Greengrass regressa às câmaras ao fim de três anos, com um texto de Billy Ray (State of Play). Os holofotes centram-se, contudo, no que pode fazer o grande Tom Hanks, que, 14 anos depois de Castaway (2001), parece voltar a ter um papel com expressão para chegar às Nomeações.


9. Blue Jasmine
Woody Allen, Julho

Ano não é ano sem um original do mestre, e é inevitável incluí-lo na lista. Depois de To Rome with Love, Woody Allen volta a intercalar o seu aclamado périplo pela Europa, para filmar, em Manhattan, o cruzamento entre uma moderna dona de casa nova-iorquina (Cate Blanchett) e uma mulher a atravessar uma profunda depressão (Sally Hawkins). O elenco inclui ainda Alec Baldwin, Louis C.K., Peter Sarsgaard, e duas figuras de Boardwalk Empire: Bobby Cannavale e Michael Stuhlbarg.


8. Rush
Ron Howard, Setembro

O cenário é o Mundial de Fórmula 1 de 1976, e a história é a da rivalidade limítrofe, dentro e fora do circuito, entre Niki Lauda (Daniel Bruhl), o calculista austríaco da Ferrari, campeão em título e favorito, e o seu maior competidor, James Hunt (Chris Hemsworth), um playboy inglês da McLaren. O elenco não é deslumbrante, mas o entusiasmo reside na câmara e no texto. Depois de vários anos afastado das grandes produções, o fantástico Ron Howard (A Beautiful Mind, Cinderella Man, Frost/Nixon, Angels and Demons) é quem realiza, com o argumento a ser assegurado por Peter Morgan (The Damn United, Frost/Nixon).


7. Oldboy
Spyke Lee, Outubro

É o remake do filme coreano de culto com o mesmo nome (2003), realizado por Chan-wook Park, e que nunca vi. O argumento é, no entanto, incrivelmente cativante: um homem é raptado e mantido em cativeiro durante 20 anos, sem nunca lhe explicarem porquê, sendo, então, igualmente libertado sem motivo, o que o levará a uma obsessão por respostas e por vingança. Spike Lee, que realizou os notáveis 25th Hour e Inside Man, promete um filme ainda mais perturbador do que o original. Josh Brolin é o protagonista, com Elizabeth Olsen e Samuel L. Jackson nos outros papéis de relevo.


6. Calvary
John Michael McDonagh, Setembro

Quem não viu The Guard, uma das mais genuínas pérolas de 2011, que se redima imediatamente disso, e se junte à espera por esta nova colaboração entre John Michael McDonagh e o sempre carismático Brendan Gleeson. Calvary contará a história de um padre bom-coração, que se esforça por melhorar o mundo à sua volta, mas que será permanentemente chocado pela natureza dos habitantes da pequena vila onde vive. Espera-se, claro, um regresso ao mais requintado e contagiante humor negro do mercado.


5. Before Midnight
Richard Linklater, Maio

Conclui-se, finalmente, em 2013, a excepcional trilogia-romance que Richard Linklater iniciou em 1995 (Before Sunrise), e que lhe valeu uma nomeação ao Óscar de Melhor Argumento Adaptado, em 2004 (Before Sunset). Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se, agora, quase literalmente 20 anos depois do primeiro dia, e da viagem de comboio que marcou as suas vidas. Tendo em conta a temporalidade, o conceito, a extrema qualidade do texto e a química farta entre os protagonistas, Before Midnight tem de ser, definitivamente, um dos filmes mais esperados do ano. Quem não viu os dois primeiros capítulos, que não perca a oportunidade.


4. The Counselor
 Ridley Scott, Novembro

12 anos depois da última nomeação ao Óscar, o lendário Ridley Scott (Blade Runner, Gladiator, Black Hawk Down) toma as rédeas de um dos candidatos do ano. A última década não foi especialmente meiga para ele, mas Prometheus, no ano passado, foi talvez o filme mais feliz desse decurso, e agora as condições são muito boas para poupar expectativas. O thriller de um advogado do quotidiano que tenta lucrar com o tráfico de droga, sem sujar as mãos, é um original com a chancela de Cormac McCarthy (The Road, No Country for Old Men, em cinema), um dos mais celebrados autores americanos da actualidade, e vencedor de um Pulitzer. O cast, por sua vez, grita autenticamente a qualidade, com Fassbender a ser figura central, e com Brad Pitt, Javier Bardem e Penélope Cruz no suporte.


Terrence Malick, Março

Dois anos passados do maravilhoso The Tree of Life, Terrence Malick volta mesmo aos ecrãs, ele que se costuma dar a hiatos bem mais longos do que isso, tendo, inclusive, três filmes agendados para 2013 (ainda Lawless e Knight of Cups). Esse era, contudo, o plano para o ano que passou, e Malick não avançou com nenhum, pelo que a única coisa certa é contar com To the Wonder. Esta é a história de amor entre um homem (Ben Affleck) e duas mulheres (Olga Kurylenko e Rachel McAdams), com o brilhante Javier Bardem a desempenhar o papel de um padre, também ele assombrado pela dúvida. Quem já viu Malick saberá que não é para todos os gostos, mas depois do luxo indiscutível da última aparição, não há como não entusiasmar. A fotografia do extraordinário Emmanuel Lubezki, no trailer, dá o mote.


2. The Monuments Men
Clooney, Dezembro

É um candidato de corpo inteiro ao Óscar, tal é a qualidade de todos os seus envolvidos. Dois anos após o belíssimo The Ides of March, Clooney volta ao ataque como one-man-show: será realizador, co-argumentista e figura central desta história verídica da equipa de historiadores e curadores de arte dos Aliados que, em plena 2ª Grande Guerra, teve como missão resgatar obras de arte icónicas que os Nazis tinham roubado e consideravam destruir. A banda sonora é do excepcional Alexander Desplat, e o cast tem qualidade que nunca mais acaba, entre Matt Damon, Cate Blanchett, John Goodman, Jean Dujardin, Bill Muray e Hugh Boneville.


1. The Wolf of Wall Street 
Scorsese, Novembro

O maior candidato a filme do ano, é, porém, a 5ª parceria dos monstruosos Marty Scorsese e Leo DiCaprio que, com Gangs of New York, The Aviator, The Departed e Shutter Island no palmarés, parecem mais ou menos condenados à glória. O filme baseia-se nas memórias de Jordan Belfort, e conta a ascensão e queda dele que foi um dos mais excêntricos e bem-sucedidos correctores da Bolsa americana, na década de 90. Como se não bastasse, o argumento é adaptado por nada menos do que Terrence Winter, emérito criador de Sopranos e de Boardwalk Empire, ficando a banda sonora a cargo do colossal Howard Shore. Num rol de secundários que, apesar de tudo, podia ter outra densidade, valem ainda a pena mencionar Jean Dujardin e Jon Bernthal (The Walking Dead).


É material que chegue, mas porque a oferta é farta como sempre, ficam cinco extras a servir de bónus.

Untitled Abscam Project, David O. Russell, Dezembro.
Ainda não se sabe se vai efectivamente estrear este ano, mas tem de merecer a nota. Depois do sensacional Silver Linings Playbook, David O. Russel tem em mãos a história verídica de uma operação secreta do FBI, no final dos anos 70, que levou à condenação de uma série de políticos americanos de nomeada. Christian Bale será o protagonista, secundado por um elenco verdadeiramente de luxo, que junta Bradley Cooper, Jeremy Renner, Jenny Lawrence e Amy Adams.

The Place Beyond the Pines, Derek Cianfrance, Março.
É a nova parceria entre o realizador Derek Cianfrance e Ryan Gosling, depois do brilhante Blue Valentine (2010). A Gosling junta-se Bradley Cooper, numa dupla verdadeiramente em alta nos dias que correm, para contar o choque pessoal e profissional entre um polícia ambicioso e um ladrão que é forçado a isso.

The Great Gatsby, Baz Luhrmann, Maio.
Fez parte da lista do ano passado, e foi uma das ausências mais notadas da temporada, mas o drama trágico sobre os loucos anos 20, inspirado na obra lendária de Scott Fitzgerald vai agora ver a luz do dia. O trailer confirmou o que já se sabia: que Baz Luhrmann não será para todos os gostos, e que Gatsby ou vai brilhar ou vai cair em grande. O elenco continua, obviamente, a ser inatacável - DiCaprio, Carey Mulligan, Joel Edgerton e Tobey Maguire.

Star Trek Into Darkness, J. J. Abrams, Maio.
Possivelmente, o candidato número 1 a blockbuster do ano. Quatro anos após a extraordinária ressurreição da saga, J.J. Abrams terá sobre as costas o peso de responder a uma medida que deixou muito alta. A jóia do cast será o extraordinário Benedict Cumberbatch, um vilão de vulto, que virá, ao que se diz, pessoalizar a acção com Kirk (Chris Pine).

Elysium, Neill Blomkamp, Agosto.
Num ano pejado de sci-fi apocalíptica, o que sobressai é este Elysium, ou não fosse o seu criador o sul-africano Neill Blomkamp, que deslumbrou com District 9, em 2009, no seu ano de estreia. A acção ocorre em 2159, quando os ricos vivem numa estação espacial, e os pobres numa Terra sobrepovoada e arruinada. Matt Damon é a estrela da companhia.

Que a colheita seja tão boa como parece.

quarta-feira, 13 de março de 2013

House of Cards. Abram alas que é de culto


Nada mais, nada menos. Política produzida e co-realizada por um tal de David Fincher, e protagonizada por outro senhor chamado Kevin Spacey, reclamaria sempre todo o apetite possível. A verdade é que o piloto chega para deixar-nos convencidos. House of Cards tem um carisma quase palpável. É tão crua quanto charmosa, tão fidedigna quanto provocante, é pragmática, fria, negra e completamente contagiante ao mesmo tempo.

O background é a política feia, e recebe-nos com um "Welcome to Washington", corolário de um monólogo inicial brilhante. No centro da acção, está um Congressista com décadas de casa, presidente da Maioria, com poder e contactos acumulados, uma ambição borbulhante e preparado para dar finalmente o salto que há muito ansiava, rumo à Administração recém-empossada, após uma campanha que ele próprio orquestrou com mestria, para que nada pudesse falhar.

Frank Underwood (Kevin Spacey) é um homem verdadeiramente vultuoso e sanguinário, que sabe tudo sobre o jogo, sabe tudo o que tem de ser feito, mas que está ancorado num posto bem pior do que ele, à espera do momento ideal para dar o salto, e para ser o que realmente interessa. No último segundo, porém, puxam-lhe o tapete. Na Política, afinal de contas, as promessas e a lealdade são sempre relativas, e a corda rebenta do lado mais fraco... o lado fraco é que nem sempre é o mais óbvio. A série contará, pois, a maquiavélica vingança de Spacey, agora uma toupeira, um free agent determinado a implodir tortuosamente o Executivo, até que seja o próprio gigante a cair-lhe aos pés.

Beau Willimon, nomeado ao Óscar, no ano passado, pelo Argumento Adaptado de The Ides of March, foi o responsável pelo desenvolvimento da série. House of Cards respira política, está embrenhada no meio, mas perverte as fórmulas. Não tem o carisma emocional ou a lógica de grandeza de um West Wing, não tem nada de romântico; o que quer é destruir em vez de construir, tendo toda uma acção pessoalizada e mesquinha que lhe confere um ângulo sensacional. Funciona, obviamente, porque Kevin Spacey continua a ser autenticamente colossal, um ícone que nos brutaliza a cada cena, tamanha é a sua aura. Spacey é temível a actuar e a narrar, e é impossível vê-lo, e não achar que a sua ira será imparável. Escrever a história para um protagonista implacável não é novidade, mas, ao contrário de um Boss, outro exemplo recente de séries políticas, este protagonista não é o centro, está, antes, na sombra, e isso enegrece tudo para melhor.

Na lista de personagens, destacam-se ainda duas mulheres. Robin Wright é a Miss Underwood, e também é senhora de um poderio a toda a prova. Não é nem a mulher submissa que é enganada, nem a mulher viperina que joga nas costas; é o equilíbrio de forças exactamente ideal para o marido ("I love her, more than sharks love blood"). Kate Mara é, por sua vez, uma nova jornalista à procura de espaço na redacção de um grande jornal, que vai cruzar-se no caminho de Frank, e tornar-se numa ferramenta requintada para a sua agenda.

A série é uma adaptação homónima da BBC (1990), baseada num livro de Michael Dobbs. Tem a particularidade de ser um original da Netflix, um serviço americano de streaming, ou seja, a série não foi teletransmitida, sendo, na verdade, toda a primeira temporada (13 episódios) disponibilizada na Netflix ao mesmo tempo, no início de Fevereiro. A season 2 já está a ser produzida.

Mal lhe ponham os olhos em cima, não terão muitas dúvidas. House of Cards é o primeiro luxo de 2013.

terça-feira, 12 de março de 2013

O minuto 39


M’Baye Babacar Niang. 18 anos, o jogador mais novo em campo. Titular no jogo mais importante da História recente do gigante Milan, hoje uma equipa jovem, em profunda transformação, à procura de se encontrar. Ao minuto 39, num dos templos supremos do futebol europeu, contra a melhor equipa da História, M’Baye Babacar Niang correu sozinho 40 metros. Manteve o pique, aguentou o bafo do defesa, esperou pela saída de Valdés, e colocou. Aos 18 anos, num cenário infinitamente maior do que ele, fez tudo, tudo bem. M’Baye Babacar Niang. 18 anos, e ia virar a História. A bola, porém, teve vida própria. Decidiu limitar-se a beijar o poste e a voltar, um eco incrédulo num silêncio sepulcral. Não era a hora. Com todos os méritos deste Milan, que foi tão boa surpresa, não era a hora. No contra-ataque seguinte, Messi fez a formalidade de explicar isso mesmo.

Claro que o minuto 39 não é o resumo do jogo. O Barça foi anos-luz superior, teve um início digno de um filme de terror, e, sinceramente, nunca pareceu possível de parar. Iniesta disse que meteria as mãos no fogo pela remontada. Dani Alves disse que meteria o corpo todo. O Barça era a única equipa com alguma coisa a perder, e no entanto, a ver o Camp Nou efervescer, a ver Messi, aos 5 minutos, no meio de uma multidão dentro de uma cabine telefónica, enfiar um bilhete no ângulo, pareceu sempre inevitável. O Barça continua a ser um monstro. Talvez diferente, talvez pior, mas ainda, definitivamente, a única equipa para a qual um 0-2 vindo de Milão poderia não ser mais do que um pormenor.

Hoje, o Barça foi estapafurdiamente mais forte. Podia, mesmo assim, ter sido eliminado. Do David contra Golias do San Siro, ao lance do menino Niang, ou a algum ressalto dos últimos minutos, quando a própria equipa, intratável em todas as horas de outras noites, também recuou, também teve medo, e também fez prova da sua humanidade. Sem demérito para este Milan cheio de coração e de vitalidade, e que voltará, por certo, a surgir nas esquinas da Europa em breve, quem sabe já com a cara fechada dos adultos, não era, no entanto, a hora. Talvez diferente, talvez pior, mas o Barça continua a ser o Barça. Madrid, Bayern, Borussia e Juve que se preparem, porque não podia ser assim tão fácil. Terão mesmo de ser eles próprios a provar se são bons o suficiente.

The League (2009)


Necessariamente apelativa para quem já tenha jogado alguma Fantasy League (aqui ou aqui, para citar links de culto por cá). A série homónima retrata cinco amigos nos seus mid-30's, e o curso da vida nesses anos, com mulher, filhos e relações, lido com um humor maduro e mundano ao mesmo tempo. Todo o universo é, obviamente, subjugado ao torneio virtual, com os personagens, principais e secundários, e o próprio dia-a-dia, a viverem na lógica viciante da competição.

Pete (Mark Duplass) é o vencedor crónico da Liga, e divorcia-se no piloto da série. Kevin (Stephen Rannazzisi) faz par com Pete, de melhores amigos e de núcleo, e tem na entusiástica mulher Jenny (Katie Aselton) o braço direito para gerir a equipa. Ruxin (Nick Kroll) é a raposa, um competidor voraz, ainda que constrito a agradar à sua mulher-troféu. Andre (Paul Scheer) é solteiro, o mais rico e o mais ingénuo, e o permanente escape humorístico para o grupo. Taco (Jon Lajoie) é o mais novo, sempre rodeado de mulheres e sempre a leste do mundo, liga incluída. Os dois últimos são os personagens mais elaborados, mas, no global, os três primeiros (mais Jenny, refira-se) é que são a estrutura da série, os mais carismáticos e cativantes.

Juntos plasmam uma química de valor, numa comédia que se situa num momento mais tardio do que é o modelo das séries de amigos do mercado. The League não deslumbra instantaneamente, mas vai sempre em crescendo, e é facto que, no fim da primeira temporada (6 episódios com os habituais 25 minutos), assemelha-se a empatia. O seu grande trunfo é usufruir de um tipo de piadas muito pouco plásticas, muito genuínas, típicas das entranhas e das infantilidades de um grupo de amigos de muitos anos, e isso valoriza-a bastante. A season 4 acabou em Dezembro, e a série já voltou a ser renovada.

domingo, 10 de março de 2013

The Master


Muito potencial desbaratado.

The Master é um filme fraco, e não há volta a dar a isso. Tem uma ideia original extremamente promissora e tem interpretações, elas sim, de um nível alto, mas, tudo somado, não é suficiente. A história criou polémica desde a primeira hora, por, alegadamente, inspirar-se nas raízes da Cientologia. No pós-2ª Guerra, um homem, filósofo, cientista e filantropo, cria um culto baseado numa espécie de psico-terapia, que propõe a existência de vidas passadas, e que a resolução para os problemas da vida real é justamente estimular a psique, e voltar a essas vidas e à origem dos problemas. Lancaster Dodd, de seu nome, encontrará então, por completo acaso, um homem profundamente perturbado, vítima de demência e ex-soldado, que virá a tornar-se no seu protegido.

Paul Thomas Anderson, nomeado pela Academia uma vez por Realização e três por Argumento, escreveu e realizou. A ideia é dele, e tem mérito por isso, mas é ele igualmente a principal razão porque as coisas não funcionam. Toda a acção é pessimamente concretizada. Não é coesa, nunca consegue ser interessante, e nunca está sequer perto de deslumbrar, como parecia ser o objectivo. Anderson só se preocupou em ser muito distinto, investindo numa narrativa desestruturada, supostamente profunda, mas que só lhe vale um produto final superficial e pretensioso.

Absolutamente excepcional é a performance de Joaquin Phoenix, o pupilo. É certamente por ele que o filme não foi revisto em muito pior conta. Phoenix é genial, genuinamente perturbado, insano, do olhar vítreo, à desorientação e à forma como o próprio corpo lhe responde. Sabe-se da sua instabilidade na vida real, da sua propensão a depressões e do hiato dos últimos anos, mas em muito boa hora regressou aos grandes palcos. É um actor impressionante, e foi com toda a justiça que o colocaram como único verdadeiro rival de Day-Lewis ao Óscar deste ano.

Seymour Hoffman é o mentor, a figura patriarcal mais ou menos delirante, e não está mal, como nunca está. É um actor de referência, e é sempre um seguro. Ainda assim, desta vez, não justificou colher a Nomeação para Secundário, em prejuízo de Di Caprio (Django) ou de Javier Bardem (Skyfall).

The Master era um filme extremamente cativante no papel, que rendeu uma extraordinária personagem, mas que ficou bastante longe do engenho necessário para o nível que ambicionava ter.

6/10

Anfield recuperou a alegria


Nos idos de Março, a primeira vitória da época num jogo grande. À entrada para os dois meses em que tudo se joga, o Liverpool chega ao seu pico de forma: 3 vitórias seguidas pela primeira vez, e o 2º melhor ataque da Premier League. A Champions continua longe, mas a Europa é para levar a sério. Mais do que isso, há razões para crer que está mesmo a nascer uma pérola nas mãos de Brendan Rodgers.

O norte-irlandês chegou no Verão, novato de uns meros 39 anos. Nas duas épocas anteriores, dedicara-se a meter autenticamente o País de Gales no mapa: em 2010/2011, o Swansea tornou-se na primeira equipa galesa a chegar à Premier League; no ano seguinte, Rodgers assegurou aos cisnes um belíssimo 11º lugar. Na ressaca de Benítez, e com experiências mais ou menos sofríveis com Hodgson e Dalglish, que vedaram o top-5 ao clube nos três anos anteriores, em Anfield achou-se que era altura de bombear sangue novo.

A época tem andado longe de ser uma viagem tranquila. À 5ª jornada, por exemplo, a equipa ainda nem tinha ganho, e no fim da primeira-volta, estava num incerto 10º lugar. Saiu da Liga Europa logo nos 16-avos, e foi eliminada da Taça de Inglaterra pelo Oldham... da 3ª divisão. Mesmo assim, o ano tem usufruído de tendências irreprimíveis, pela positiva.

Acima de todos, um nome claro, feito nas margens mais agrestes do Rio da Prata, todo ele alma charrua: aos 26 anos, Suárez tem-se afirmado definitivamente como um dos melhores pontas-de-lança do mundo. O talento e a aura extremas nunca enganaram, mas não era crível que pudesse ser uma pequena máquina ofertória de golos. Num campeonato de monstros, é ele, porém, e a solo, o melhor marcador da Premiership, um figurão carismático com uma carteira de mil e um recursos, que fecha, com todo o mérito, a trindade de super-estrelas do ano, com Bale e Van Persie.

Mas também um velho conhecido voltou às épocas gordas. Exactamente como a equipa, o venerável Steven Gerrard, eterno capitão, está a fazer a melhor temporada dos últimos 4 anos, com golos e assistências a uma cadência admirável, do alto dos seus 32 anos. Têm sido eles os pilares a tempo inteiro, mas não sós. Desde o início de época, o Liverpool arrisca-se a ter o melhor set de laterais da liga: Glen Johnson é o destro mais forte do campeonato; José Enrique clama todos os dias por um lugar na Roja. 3 golos e 11 assistências entre os dois!

Outro dos golpes de asa que poderá contar a época é, ainda, o mercado de Inverno. Saíram inócuos como Aquilani, Sahin e Joe Cole; entraram Philippe Coutinho, via Inter, e Sturridge, via Chelsea, mais ou menos aos 10 milhões por cabeça. 20 e 23 anos, respectivamente, têm sido poços de rasgo que se afirmaram no imediato, com um peso indiscutível no onze.

Nos últimos 7 jogos, 4 vitórias, uma única derrota. Um futebol cheio de vida, cheio de gosto, e muitos, muitos golos. Talvez nem chegue para os objectivos no imediato, mas há um futuro risonho que se insinua. O Liverpool recuperou a alegria de jogar, e uma tarde à altura do The Kop continua a ser qualquer coisa.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Há ouro na televisão portuguesa


Um assombro.

O piloto ainda enganou, deixando-nos a meio caminho de qualquer coisa. A partir do segundo episódio, contudo, esqueçam lá isso, escorre-vos génio do ecrã para fora.

Odisseia é qualidade, qualidade e mais qualidade. É com propriedade, e sem sequer ter de se pensar muito nisso, um dos melhores programas da História da Televisão Portuguesa, até onde a memória nos permita chegar. O texto, o conceito, a ideia, a concretização, são todos de uma tal antologia, que meteriam Portugal no mapa dos Gervais desse planeta no instantâneo, viesse isto a chegar-lhes às mãos. Tem tanta qualidade, que me converteu já num defensor fanático do serviço público de televisão. Bruno Nogueira começou numa privada; se é preciso que a RTP tenha prejuízos de milhões para que se vejam em Portugal os Contemporâneos, o Último a Sair e, hoje, esta magnum-opus, quando a SIC tem o Formigueiro ao fim-de-semana, e a TVI um Chuva de Estrelas para famosos, pois que ninguém ouse defender o contrário. A inteligência, a criatividade, o vanguardismo e a televisão primeiro-mundista não têm preço.

A Odisseia são dois gajos amigos, javardos de culto, que, numa fase sombria das respectivas vidas, metem-se numa auto-caravana, e mergulham numa viagem sem data nem destino pelo Interior do país, numa jornada para se encontrarem. Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington interpretam versões ficcionadas deles próprios... não uma, mas duas. Toda a acção acontece numa narrativa paralela, em que à ficção da história se associa a ficção do making-of. Como numa portentosa matryoshka, Nogueira e Waddington - que foram os reais argumentistas da série -, passam parte da acção no escritório de criativos a decidir o que vai acontecer ao Nogueira e ao Waddington que estão a viver a história na estrada, tudo numa relação imediatista a "fazer de Deus": eles decidem um twist no escritório, e isso acontece na estrada, logo na cena seguinte. Mais do que isso: a própria acção central é interrompida constantemente pela equipa de realização e por constrangimentos de produção (com o staff a ser igualmente protagonista), e por eles a passarem de actores da história, para actores do making-of ficcionado, quais camadas do Inception. Não é confuso, e se parece, sou eu que estou a rabiscar uma obra-prima. Mais vale ir já ao link e nem perder mais tempo com este texto.

Nogueira e Waddington são magistrais (Nuno Lopes, secundário, é fantástico como sempre), mas a fusão da realidade e da ficção resulta para toda a gente. O humor, o ácido, a amargura, o absurdo, a javardice e o delírio são tão simplesmente génio em estado puro, destilado como se fosse fácil. M-o-n-u-m-e-n-t-a-l.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Do que perdura


"Pela primeira vez na minha carreira fui superado por um ambiente. Não estive ao meu nível, porque nunca me senti cómodo, foram muitos sentimentos. Há coisas que não se explicam. Da ovação no início nunca me vou esquecer na vida."
Ronaldo

Não se gosta de ganhar assim. Não por ter sido um roubo de igreja, mas porque o bom senso é tão vital à alta competição como o talento e o trabalho, e continua a ser um doloroso bem em vias de extinção. Nani foi de sola, tinha a obrigação de saber melhor, e é facto que partiu Arbeloa; no entanto, e mesmo com uma má leitura do lance, impunha-se um árbitro à altura do jogo, com discernimento para perceber que, mais do que aquilo não ser uma agressão, às vezes nem um caso capital justifica que se decapite o jogo que o mundo está a ver.

Conta menos porque ganhou, mas foi digno ver Mourinho admitir que provavelmente não o conseguiria contra onze, que o United foi melhor e mereceu passar, e que a expulsão não devia ter acontecido. O Manchester provou a grandeza do jogo, soltou o peso do mundo nas costas do Madrid, e tinha, de facto, a sua sorte nas mãos. Mesmo depois daqueles dez minutos fatídicos, em que tudo lhe aconteceu, ainda teve alma para ir fazer de Diego López o melhor em campo. Não serve a condescendência, mas é certo que, com todo o mediatismo do Real, quem tombou foi um dos poucos no planeta que pode dizer efectivamente que é um dos seus iguais.

Sobre pertença, Ronaldo disse tudo o que há para dizer. Não que houvesse dúvidas, mas aquele será sempre o seu lugar, aquela será sempre a sua gente. Numa eliminatória entre os dois maiores clubes do mundo, receber assim o mais temível jogador do rival é de um alcance incompreensível. Nunca vi nada semelhante, e não sei se voltarei a ver. As imagens do carinho e da reciprocidade inenarrável das pessoas, repito, num jogo entre os dois maiores clubes do mundo, perdurarão na memória, e falarão por ele muito mais alto do que qualquer colecção de Bolas de Ouro.

Foi uma semana à altura da História do Madrid, e foi encabeçada por dois que já lá têm o seu lugar.

terça-feira, 5 de março de 2013

The Beautiful Game


Cruel que tenha de ser já. Oitavos não são sítio para se jogar finais.

O Real é favorito. Mas só ligeiramente. Pelo poderio evidente, mas sobretudo pelos Especiais, e pela vertigem mística de jogar a época hoje. O United não poderá, contudo, ser desvalorizado em momento nenhum. Costumo olhar com uma certa condescendência para a gama táctica de Ferguson, e acho que ele a sacrifica sempre que pode, mas desengane-se quem achar que, hoje, é possível apanhá-lo desprevenido. Fergie não tem só um rolo compressor nas mãos; nos últimos meses, dedicou-se a modelar a equipa especialmente para este jogo. Hoje tem uma malha armadilhada absolutamente temível, com uma teia a sustentar os melhores avançados do mundo, como já se viu no Bernabéu. 0 golos sofridos nos últimos 4 jogos da Premier League ajudam a perceber a ideia.

Dito isto, e tendo uma pena inenarrável que este super-United tenha de ir já embora, não é hora para ficar no caminho da História. Essa há de se escrever em português, lembrando, por certo, mais uma noite para a eternidade no Teatro dos Sonhos, com os dois maiores líderes de gerações, os dois maiores clubes do mundo, e a reverência daquele santuário, um dia mais, a um dos seus, a um dos mais espantosos futebolistas que o Jogo já viu.

Na antecâmara de um United-Madrid, é possível não gostar de Futebol?

segunda-feira, 4 de março de 2013

Ser Benítez nunca será suficiente


"Eu venci a Liga dos Campeões, a Liga espanhola duas vezes, a Taça de Inglaterra. Porque é que me colocaram o título de interino? Porque é que eles [Direcção] tinham de fazer aquilo? Devem ter pensado: 'Ele esteve no Liverpool portanto é melhor colocar o termo interino' (...) Estes adeptos do Chelsea têm uma agenda, mas estão a perder tempo com os seus cartazes e músicas. Não se precisam de preocupar comigo. Vou sair no final da época."

Benítez, a meio da semana, depois da vitória na FA Cup

2 Ligas Espanholas e 1 Taça UEFA. No Valência. 1 Taça, 2 Supertaças e 1 Liga dos Campeões. No Liverpool. A carreira de Benítez fala por ele. Ganhou muito, ganhou nas duas Mecas dos nossos dias, ganhou na Europa, e ganhou com underdogs. Ganhar assim não se relativiza. Benítez, ainda com 50 anos mal feitos, esteve, por mérito próprio, no top-5 de melhores treinadores da primeira década do novo século.

O espanhol é um ganhador feito a pulso. Um homem com uma fome extraordinária de vitórias, um animal da competição, alguém que teve de se provar quase todos os dias da carreira, e cuja motivação diária sempre foi transcender-se e ganhar um pouco mais do que quer que fosse. Respeito isso extraordinariamente. O único problema de Benítez é que querer e fazer nem sempre são suficientes para se ser. Lembro-me de uma crónica de um jornal inglês aquando dos Chelsea-Liverpool titânicos daqueles anos com Mourinho. Benítez perdeu os campeonatos (e esse foi o último Liverpool que lutou por campeonatos, também não fica mal lembrar), mas assassinou duas vezes e, para a História, o projecto europeu daquele Chelsea fantástico. Ninguém ficou por cima, verdadeiramente. Ainda assim, ao falar disso, o cronista insistia que, na prática, e independentemente do que fizessem, os pratos nunca estavam iguais. De cada vez que entrassem em campo, Mourinho continuaria a ter a aura de um feiticeiro grisalho num sobretudo, um temível que pode tudo. Benítez continuaria a parecer o dono de uma albergaria na Extremadura, a suar da testa, sempre no limite de sucumbir ao seu próprio destino.

A Benítez nunca chegou, nunca chegará, tudo o que ganhou. E isso inclui o Real de Del Bosque, o Chelsea de Mourinho, o Milan de Ancelotti. No fim do dia, Rafa será sempre uma figura estranha, agreste, impessoal, incapaz de contagiar o que quer que seja, e que toda a gente quer ver mais ou menos pelas costas. É estupidamente ingrato, mas há coisas que não nascem com uns, por melhores que esses possam vir a ser. Há outros, pelo contrário, que contagiam com uma naturalidade tal, que às vezes até custa a crer. É uma luz que vem de dentro, uma electricidade extasiante que os segue para onde quer que eles vão, e no que quer que façam. É o Pelé-Maradona, o Prost-Senna, o Benítez-Mourinho. É estupidamente ingrato, mas, no fim da história, mais do que ao talento, à sorte, à ambição, à capacidade de trabalho, à mentalidade, tudo se resume ao elemento mais extraordinariamente aleatório do Universo, que ou se tem ou não se tem. Carisma.

Acredito que Benítez ainda é um dos nomes mais significativos do mercado europeu de treinadores. E até acredito que se possa despedir deste Chelsea com algum troféu para contar. Impõe-se, contudo, uma paragem, para seu próprio bem. E, sobretudo, melhores escolhas. Para subsistir, Benítez terá de escolher um projecto que precise mais dele do que ele do projecto. Com expectativas mais baixas, e sem termo de comparação, para que depois, como bom underdog, possa fazer a diferença na arena de frente a frentes onde, mesmo longe dos factores-x dessa vida, ele sempre se notabilizou. O mais longe possível do rastro freudiano e traumatizante dos últimos anos, onde o fantasma irremediável de Mourinho o assombrou em cada rua de Milão e de Londres. Ganhá-lo no campo já era difícil; na devoção das pessoas, nem que Benítez trabalhasse duas vidas.

Arsène, thanks for the memories


Duas semanas, e acabou mais uma época do Arsenal. A Taça foi a primeira a ir-se, em casa e para um Blackburn do Championship. Logo depois, e também em pleno Emirates, veio uma trituradora de Munique despachar uma eliminatória de gigantes à primeira, com uma naturalidade desconcertante e dolorosa. Hoje, por fim, no derby dos derbies da capital, Villas-Boas orquestrou a estocada final, e cristalizou os gunners fora da zona Champions.

Wenger e o projecto Arsenal já foram o que de melhor se fez em Inglaterra. A lufada de ar fresco continental que veio reeducar a Premier League no fim do velho século, e precipitar tremendamente a sua evolução. Renderam 3 campeonatos, 8 taças, 2 finais europeias e o absurdo da equipa campeã sem derrotas em 2004. Mesmo depois, quando já não estava a ganhar, o Arsenal perpetuou-se com uma estima mais ou menos unânime: Highbury era um santuário de filosofia e de bom futebol, a melhor das praças para se desfrutar do espectáculo. Essa matriz não se perdeu, de facto. O que o tempo obliterou de vez foi a capacidade competitiva.

O Arsenal não é só um clube grande e rico. É um dos 10 mais importantes do mundo. E quando se é um desses, não se pode passar 8 anos sem ganhar nada. Não se pode estar há 5 sem jogar realmente para ser campeão. E depois de ter o legado, não se pode ir completar o ano 17 da era Wenger a ser humilhado na Champions e a falhar a edição do ano seguinte, mercê de um lugar não se sabe ainda quanto no meio da tabela, e sem um troféu que se festeje.

Tal como Ferguson, Wenger já se confunde com o clube. Parecem insolúveis e, na verdade, talvez seja francamente irrealista pensar que o francês pode mesmo estar de saída. Ao contrário de Sir Alex, porém, Wenger perdeu o nervo, a centelha. Deixou de ganhar, e conformou-se. Continuava a ter a Academia, as contas em ordem, bom futebol e o estádio cheio. Infelizmente para ele, não é assim que o jogo funciona. Ferraris não servem para se ser feliz a deixá-los na garagem. O Arsenal de hoje tornou-se num gigante que agoniza à margem de si próprio. Num colosso que precisa desesperadamente de um líder entusiasmado, que queira e que saiba ganhar. Um líder que crie impacto e que exorcize o marasmo. O Arsenal de hoje precisa de um novo Wenger.